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Donos da verdade

Sionismo está plantado em Israel como um cancro profundo

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Autor/Imagem:
Giorgio Romano Schutte*/Via Fundação Perseu Abramo - Foto Reprodução/ABr

A atual brutal violência do Estado de Israel contra a população palestina não deveria surpreender ninguém. A ideologia sionista sempre carregou em si a lenda de um povo sem terra ocupando uma terra sem povo. Na melhor das hipóteses, estariam lidando com uma população não-civilizada, semibárbara. Após as ações militares do Hamas em 7 de outubro, várias lideranças sionistas argumentaram, de forma direta ou indireta, que se tratavam de ações de desumanas e que, portanto, o Hamas e seus seguidores devem ser tratados como desumanos. Na verdade, é assim que os sionistas desde sempre trataram e olharam para o povo Palestino.

A colonização veio junto com uma ideologia de superioridade e racismo, e, na impossibilidade de expulsar todos os palestinos com um sistema de apartheid, a vertente de esquerda argumentava que o sionismo iria libertar a região da opressão do feudalismo. Tratava-se de um socialismo para um povo só. Hoje em dia o sionismo não é mais laico, nem tem a fachada socialista dos Kibutz, ele assume de vez a cara de um extremismo de direita liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que ocupa, desde dezembro 2022, pela terceira vez, o posto (primeira de 1996-1999, segunda de 2009-2021).

Yasser Arafat, o líder da Organização pela Libertação de Palestina (OLP) de 1969 até sua morte, em 2004, comentou em uma entrevista no início da década de 1990 que o drama dos Palestinos era ser as vítimas das vítimas da história. De fato, embora, a ocupação e colonização de terras árabes pelo sionismo tenha começado antes, ganhou força na década de 1930, como o avanço do nazismo. Sob domínio dos britânicos e com o avanço rápido da colonização sionista, houve uma primeira reação em 1937 que ficou conhecida como a revolta Árabe, que chegou a controlar Jerusalém, Nablus e Hebron. Para reprimir essa revolta, as milícias sionistas e forças armadas britânicas atuaram em sintonia. O autor Rashid Khalid registrou que cerca de 10% dos homens adultos na Palestina foram mortos. O primeiro dos muitos massacres contra o povo palestino que marcam o avanço da colonização sionista das suas terras.

Mas foi a ONU que, em 1948, decidiu, em nome do direito internacional, que os Palestinos deveriam ceder cerca de metade das suas terras para a criação do Estado de Israel. Em 1948, quase a totalidade dos países africanos e grande parte dos asiáticos não haviam ainda conquistado sua independência, logo, essa ONU que cometeu tamanha injustiça foi basicamente branca, dominada pelos países do Norte, e, nesse caso, com um apoio incondicional da União Soviética, que acreditava que o Estado sionista tenderia a favorecer o campo socialista, em um contexto no qual os países árabes ainda estavam sob controle político de monarquias conservadoras, aliadas do Ocidente.

Essa decisão da ONU, em um momento em que o Brasil estava na presidência da Assembleia Geral (AGNU), com a figura muito respeitada em Israel, Osvaldo Aranha, só foi possível porque o mundo havia assistido ao Holocausto, um crime não só contra o povo judeu, mas contra a humanidade. Isso criou uma massa crítica ideológica e política para atender o pleito dos sionistas. Há, porém, uma coisa fundamentalmente errada: o crime foi cometido na Europa, por europeus (nazistas e seus colaboradores ativos e passivos), mas quem teve de se sacrificar foi o povo palestino!

Logo, os árabes não tinham por que aceitar essa divisão e tentaram, com a força militar impedir, em vão, a instalação do Estado de Israel. Isso resultou em uma destruição massiva dos povoados palestinos e um êxodo forçado, conhecido como o Nakba (em português, a catástrofe), em 1948. A ONU entrou para aliviar o sofrimento ao instalar o primeiro grande programa de apoio aos refugiados na sigla inglesa: UNRWA, que até hoje é o maior programa para apoio a refugiados. A grande maioria da população em Gaza tem status de refugiada e, desde então, a política social e educacional nos campos de refugiados é organizada e mantida pela ONU. Um trabalho importante, essencial e louvável, mas que não deixa de legitimar a colonização dos terras palestinas e a expulsão da sua população.

Passaram-se mais três guerras: em 1956, quando Israel ajudou as forças britânicas e francesas contra o Egito do Gamal Abdel Nasser (1954-1970); em 1967 e 1973, quando Israel resistiu, com o apoio dos EUA, à ofensiva das forças armadas dos países árabes lideradas por Egito e Síria. O Estado de Israel se tornou o maior aliado dos EUA em apoio militar e político desde então. Era, e continua sendo, um pilar fundamental para exercer a hegemonia estadunidenses em uma região que concentra mais da metade das reservas mundiais de petróleo. Ao mesmo tempo, o lobby sionista nos EUA tinha se tornado mais poderoso, com enorme capacidade de influenciar a política, a mídia e a academia no país. Foi a partir da guerra de 1967 que Gaza, Cisjordânia e Golã passaram a ser militarmente ocupadas por Israel. Os primeiros dois territórios deveriam, junto com Jerusalém Oriental, ser a base de um Estado Palestino. Na década de 1970 e 1980, assistimos a várias ações da própria OLP, que então era caracterizada pelos aliados de Israel como organização terrorista.

Mas, na década de 1960 e 1970, pós-descolonização, a Assembleia Geral da mesma ONU (AGNU) começou a ser palco de contestação contra a negação dos direitos dos palestinos. Os povos recém-descolonizados, que hoje chamamos o “Sul Global”, se identificaram com a luta dos palestinos, e, de lá para cá, assistimos a várias resoluções aprovadas na Assembleia Geral (com a maioria dos votos) e vetadas no Conselho de Segurança (pelo veto dos EUA) em defesa dos Palestinos e contra a ocupação ilegal da Cisjordânia e Gaza. Houve no início da década de 1970 inclusive a aprovação da resolução da AGNU que classificou o sionismo como forma de racismo. Resolução que foi revogada no início da década de 1990. Mas Israel nunca se preocupou com isso e sabe que pode esticar a corda quanto quiser, que os EUA até podem ficar constrangidos, mas nunca vão deixar de apoá-los.

Ou seja, a ONU ganhou um segundo papel no conflito: além de aliviar o desastre humano, se tornou um palco de contestação, porém, sem efeito prático. A solução não virá, portanto, da ONU, que foi ator principal do pecado, conforme explicado, e continua refém dos interesses hegemônicos dos EUA e seus aliados. Isso não significa que não seja importante usar o espaço para disputar a narrativa política e muito menos negar a importância das ações humanitárias.

A situação parecia estar em um impasse, até que, em 9 de dezembro de 1987, as populações de Gaza, e sobretudo, da Cisjordânia, resolveram enfrentar a força militar israelense com a cara e coragem, tendo como única arma as pedras da sua terra no que ficou conhecida como a Intifadah. Difícil caracterizar a população inteira como terrorista. Houve mudanças na opinião pública na Europa, no contexto do fim da guerra fria, e nesse processo, a própria OLP reconhece na prática a existência do Estado de Israel, abraçando então o projeto da ONU da solução de dois Estados. Isso culminou nos famosos acordos de Camp David, em 1992, mediados por Bill Clinton. Ou seja, a OLP fez todas as concessões básicas, abriu mão da luta armada e muitos imaginavam que se havia chegado a uma solução pacífica com o reconhecimento dos direitos mínimos dos palestinos.

Doce ilusão. O que ficou claro de lá para cá é que o Estado de Israel nunca levou a sério e nunca iria aceitar a criação de um Estado Palestino. Partiu para uma ofensiva pra inviabilizar essa solução ao estimular ocupações ilegais da Cisjordânia por colonos sionistas e separar a relação entre Cisjordânia e Gaza. Houve incentivos claros para inflamar as tensões entre a Autoridade Palestina, das forças da OLP na Cisjordânia e do Hamas em Gaza. Ou seja, houve uma anexação de fato de parte importante do território na Cisjordânia, nas terras mais férteis e com controle das águas subterrâneas.

A dupla Trump e Netanyahu, com Bolsonaro dando sua contribuição, partiu para uma nova fase: apagar o conflito. Negar o status de refugiados, questionar a legitimidade da UNRWA e tirar o assunto da pauta. Para isso, precisava do apoio das lideranças árabes. Trump foi para a ofensiva para convencê-los a reconhecer o Estado de Israel e fazer acordos de cooperação. Estes ganharam o nome de “Acordos de Abrahão”. No caso do Marrocos, por exemplo, este ganhou em troca o reconhecimento por parte dos EUA do seu direito soberano sobre o Sahara Ocidental. Nesses Acordos de Abrahão não estava o nenhum compromisso por parte de Israel com os palestinos. Até que foi servido o filé mignon: o reconhecimento do Estado de Israel pela Arábia Saudita, país sede de Meca e centro da religião islâmica, em particular do sunismo, a vertente do Islam majoritária entre os palestinos. Fazia muito tempo que esta monarquia conservadora apoiava na prática os interesses dos EUA e Israel na região, mas, da boca para fora, se mantinha solidário com o povo palestino. Ela assumiu, então, de vez, sua posição.

O que aconteceu no mês de outubro de 2023, 50 anos após a invasão do Sinai pelas forças de Egito na Guerra de Outubro de 1973, foi uma reação a esse processo de anexação de fato da Cisjordânia e ao apagamento da questão palestina de vez da agenda política internacional. O terror contra o povo palestino não começou em 7 de outubro, mas ganhou novamente visibilidade perante a opinião pública. E por mais que os líderes árabes tenham tentado durante anos se distanciar do problema, suas populações reagiram em massa obrigando-os a se posicionarem novamente, pelo menos no discurso. Na Europa assistimos à volta dos movimentos de solidariedade com o povo de palestino, visivelmente liderado por membros das comunidades provenientes de países do Sul Global, seja na primeira, segunda ou terceira geração. O conflito ganhou a cara que tem: uma herança do colonialismo e imperialismo ocidental. Não sabemos como essa fase do conflito vai terminar, mas é certo que a tentativa de apagar o povo palestino foi derrotada.

*Professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC; membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil.

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