Imbróglio no aeroporto
Somos todos iguais perante as leis. Será mesmo?
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Durante vários anos de minha vida profissional trabalhei viajando. Embora tenha feito algumas viagens internacionais, a maioria delas foi pelo Brasil. Isso me permitiu vivenciar de perto o período da crise dos transportes aéreos, que, certamente, mesmo quem não teve essa mesma experiência se lembrará das notícias pela imprensa sobre o caos nos aeroportos a partir de meados da primeira década dos anos 2 mil.
A razão disso foi a melhora financeira da população do país, provocando um crescimento significativo da demanda por voos. Dados oficiais indicam o crescimento de 210% entre 2000 e 2014. Sendo que as estruturas aeroportuárias, não acompanharam esse crescimento na mesma velocidade, sendo mantidas sem alterações significativas até aproximadamente 2010, quando o governo federal direcionou investimentos para o setor a fim de ampliar a maioria dos aeroportos e também construir alguns novos, com vistas, inclusive, à realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014.
A combinação desses dois fatores resultou em uma grande crise, provocando a proliferação do chamado “overbooking”, quando as companhias emitem mais passagens do que a capacidade de transporte de pessoas em suas aeronaves para aproveitar a onda de aumento da procura e lucrar mais, gerando grandes confusões no momento do embarque. Além disso, as pessoas, em busca de garantir suas viagens, se dirigiam aos aeroportos às multidões, fazendo com que voos tivessem atrasos chegando a até mais de 6 horas.
Esse fenômeno foi responsável também pelo aumento da reação de uma elite econômica tradicionalmente usuária desse modal de transporte, que já olhava com preconceito as pessoas de classe inferior passando a utilizar, agora, aviões em substituição às intermináveis viagens de ônibus para todos os recônditos do país, responsabilizando-as pela crise.
Foi em uma dessas vezes que, voltando de Brasília para minha cidade, São Paulo, se passou essa história. Por absoluta falta de opção, minha reserva estava marcada no último voo, se bem me lembro, próximo às 23h, sendo que meu expediente normal se encerrava às 18h, contudo, por ser uma sexta-feira e as tarefas da semana já terem sido concluídas, havíamos sido dispensados com aproximadamente duas horas de antecedência.
Como não havia nada a fazer para me ocupar e nenhum outro lugar para onde ir até o horário programado da minha partida, sujeita ainda a provável atraso cuja duração era impossível de se prever, dirigi-me ao JK onde poderia, em tese, tentar uma antecipação da viagem. Seria um golpe de sorte, mas, convenhamos, não tinha opção, na pior das hipóteses, ficaria por lá até meu embarque inicialmente previsto, 23h mais o atraso (?).
Aproximar-se dos balcões de check-in era uma missão para titã, pois a turba ocupava toda a extensão dos guichês até uns 10 m de distância e, por suposto, ninguém aparentava disposição em ceder passagem a quem quer que quisesse chegar mais próximo. Logo me dei conta da complexidade de obter meu intento e desisti. Mesmo assim, falei com meus botões:
-Já que estou aqui, vou pensar em alguma alternativa.
Logo me veio uma ideia. Como havia vários funcionários tentando organizar minimamente a confusão, fiquei aguardando um deles, pertencente à empresa pela qual ia voar – não menciono o nome, não por outro motivo que não o fato de ter me esquecido qual era, pois, convenhamos, já se vão quase 20 anos. Logo, mais ou menos próximo de mim, chegou uma pessoa com o uniforme da dita empresa. Forcei um pouco a passagem desafiando a muvuca e, com muita dificuldade, cheguei mais perto:
– Moça, por gentileza, qual o próximo voo para São Paulo? Identificando-o pelo número, ela me respondeu:
– Deveria ter saído às 14h, mas deve partir em 40 minutos (já passava das 17h), vamos começar a chamar o embarque, mas está lotado! O senhor tem reserva?
– Não. Mas acrescente meu nome à lista de espera, por gentileza.
– Ǫue lista de espera? Não há lista de espera!
– Como não?
– Devido à crise, o item foi, temporariamente, abolido do protocolo.
– Pois isso é um absurdo! A lista é um direito do passageiro. Nesse caso, exijo que seja aberta, do contrário vou registrar uma reclamação.
Diante de mais uma potencial confusão que eu estava prestes a dar início, a funcionária, apelando ao próprio bom-senso, decidiu abrir a lista. Meu nome era o primeiro, atrás de mim rapidamente se formou uma fila, todos queriam incluir seus nomes e me olhavam como se eu fosse um herói por fazer o que poderiam ter feito, mas não ousaram.
Evidentemente, apesar da minha reação, me coloco no lugar da funcionária e compreendo sua forma ríspida ao me responder, imagino a pressão à qual estava submetida, mas, feliz ou infelizmente, não sou o tipo de abrir mão de meus direitos de cidadão, aliás, todos deveriam agir dessa forma, assim as empresas se desencorajariam em desrespeitar as leis, ainda que especificamente lista de espera em voos não conste de nenhuma regulação, o costume acaba por criar um direito do consumidor. Mas os empregados não têm culpa desse desrespeito, são obrigados a cumprir as determinações de seus superiores, porém, representam as empresas diante de nós e acabam sofrendo as consequências da insatisfação dos clientes. Mas a história não termina por aqui. A coisa fica ainda bem pior.
Uma vez tendo garantido, não só a abertura da lista, como ficar em primeiro lugar nela, passei a acompanhar a movimentação relativa à chamada de embarque do voo. Estava pressentindo alguma tramoia sendo armada, apesar de estar me controlando para não perder a cabeça, mas, obviamente, sem abdicar às minhas prerrogativas de cidadão.
Finalmente os autofalantes começaram a anunciar o embarque imediato, bem como os empregados da companhia tentavam percorrer o interior da massa de pessoas, reforçando o chamado, pois o burburinho dificultava a audição. Eu procurava não perder de vista a moça que abriu e ficou de posse da lista. O processo transcorreu e o prazo limite para o embarque encerrou. Apressei-me a chegar junto dela e, ao indagá-la, respondeu que não tinha havido nenhuma desistência, mas eu continuava cismado com a situação.
De repente, percebo uma movimentação mais agitada por parte da atendente. Vejo-a correr em direção a uma pessoa recém desembarcada de um carro preto aparentemente oficial, e entrar no saguão, tento acompanhá-la, mas foi mais rápida. Gesticulando com os braços, chamava:
– Senador, senador…
O tal senador me era totalmente estranho, se o conhecesse, não me furtaria em dizer seu nome. Ele a vê, vai em sua direção, abraçam-se, trocam um beijo no rosto e ela o coloca para dentro do setor de embarque, antes que eu os pudesse interceptar. Mas não me dei por vencido. Me plantei próximo à saída por onde ela teria de passar e não demorou para retornar, quando me viu tentou se desvencilhar, mas eu a cerquei dizendo:
– Moça, você me disse que não havia mais lugares, mas colocou o tal senador para dentro da aeronave. Aquele lugar é meu.
Tentou me convencer, dizendo que era um parlamentar, deveria ter viajado no dia anterior, mas em virtude de uma agenda de última hora, fez o sacrifício de ficar na cidade até sexta-feira, ligou pedindo para eu conseguir um lugar para ele e que talvez chegasse alguns minutos atrasado. Tem um compromisso de trabalho inadiável esta noite com empresários. Como disse, não conhecia o tal senador, só sei que não era de São Paulo e não tinha a menor ideia que compromisso de trabalho podia ser esse numa sexta-feira à noite e isso não era problema meu. Eu estava determinado a pegar aquele voo e respondi:
– Não me interessa quem ele é e o que vai fazer. Poderia ser até o presidente da república. O lugar é meu por direito. Somos todos iguais perante a lei. O art. 5º da Constituição Federal prevê que nenhum cidadão tem mais direitos do que os outros.
A funcionária se chamava Edilene, posso esquecer de todo o resto, mas seu nome não me saiu da memória até hoje, li em seu crachá e anotei, ameacei fazer uma reclamação junto à diretoria da empresa. Nesse momento ela paralisou e ficou pálida, dizendo:
– Por favor, não faça isso. Posso ser demitida.
– Não é minha intenção prejudicá-la, mas não vou permitir que violem meus direitos.
– Vou consertar a situação. Venha comigo.
E me acompanhou. Entramos no setor de embarque, coloquei minha bagagem de mão na esteira e passei pelo Raio X, apresentei minha carteira de identidade no portão e a recepcionista destacou meu cartão de embarque, entramos na aeronave e ela me conduziu até o local onde o senador já estava confortavelmente acomodado.
– Senador, me desculpe, mas houve um terrível engano: este senhor estava em lista de espera aberta por um colega, mas com o tumulto ele não me avisou. Como imaginei não haver uma lista, reservei a vaga ao senhor.
– Mas, minha querida, já estou ocupando o lugar, tirei a gravata, desabotoei o colarinho, guardei minha bagagem de mão e estou saboreando minha cervejinha, não posso sair.
– Senador, o senhor não está entendendo, se ele não pegar esse voo, irá formalizar uma reclamação contra mim e eu posso ser demitida.
– Está bem, querida. Neste caso eu cedo meu lugar a ele, mas isso não fica assim. Ameaçou.
Levantou-se, pegou suas coisas, esqueceu a cerveja na mesinha e quase me atropelou. Agradeci sua gentileza, mas ele sequer me respondeu e saiu esbravejando com a cara amarrada. Tentei também agradecer à Edilene, mas ela saiu rapidamente atrás do tal senador.
Guardei minha bagagem, me acomodei na poltrona, acionei o botão para chamar a comissária e solicitei que trocasse a bebida. Ela me atendeu com a costumeira gentileza e, antes que eu pudesse abrir a latinha e relaxar, o comandante anunciou os procedimentos de decolagem. O voo partiu e pensei comigo:
– Será que existe algo a mais do que uma simples relação de funcionária e cliente entre Edilene e o senador? Se é que me entendem. Bem, pouco importa. Ǫue sejam felizes. De minha parte, estava bem orgulhoso por ter feito valer minhas prerrogativas perante alguém que julga ser “mais igual” do que os outros. Mas no fundo sentia um pouco de remorso por ter causado todo aquele estresse à Edilene.
Nas viagens seguintes a Brasília, quando chegava ou partia, tentava localizá-la em meio ao turbilhão dos guichês, – pois a crise ainda demorou para ser mitigada – me desculpar pelo transtorno e desejar a ela boa sorte em seu emprego, mas nunca consegui encontrá-la novamente. O tempo passou, a crise foi superada, os aeroportos foram reformados e hoje parecem coisa de primeiro mundo, eu me aposentei e depois disso nunca mais voltei ao Distrito Federal. Mas de vez em quando me lembro de Edilene e lamento por não ter tido a oportunidade de dizer a ela sentir muito pelo constrangimento que a fiz passar naquele dia.