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Hora da lavagem

Supremo não é Olimpo; espaço para panteão de notáveis é outro

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Autor/Imagem:
Davi Oliveira/Especial para Notibras - Foto de Arquivo

Tenho lido muitas manifestações de colegas advogados sobre qual deve ser o perfil do candidato a ministro ou ministra do Supremo na vaga que será aberta pela aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski. Boa parte entende que a escolha deve ser “do melhor nome”, daquele (ou daquela) “mais capacitado”, de alguém que faça retornar “os tempos de glória” da nossa Corte Suprema.

Esse viés me incomodou aoe ler uma nota aqui em Notibras (“Supremo precisa de negros para combater o racismo”) e me estimulou a refletir mais sobre a questão. Penso que a discussão sobre o melhor perfil da indicação não pode ser levada para o viés da defesa de uma suposta meritocracia em que o Supremo tenha que ser o panteão dos maiores juristas do país.

Primeiro, porque a régua da meritocracia é ideológica e retirada de um mundo real em que a proeminência natural é dos homens brancos, seguido (muito depois) das mulheres brancas, com espaços de visibilidade e reconhecimento menores para os homens negros e bem lá atrás para as mulheres negras. Usar esse recorte significa simplesmente se render a uma lógica de dominação da sociedade que não pode ser ignorada.

Segundo, porque nenhum país tem uma corte suprema ocupada pelos “galáticos” do mundo jurídico nacional, seja sob que medida se queira colocar a escolha (trajetória acadêmica, carreira jurídica de sucesso, livros publicados, reconhecimento dos pares), até porque sabemos como grandes trajetórias se constroem: uma pitada de competência, duas pitadas de boas amizades, e três pitadas de jogo político.

Como a competência é um bem razoavelmente distribuído entre muitas pessoas, há com certeza talentos enormes sem amizade e capacidade de articulação que estão à espera de serem descobertos em todos os recortes de classe, raça e gênero, inclusive quando as três categorias estão superpostas, por exemplo, quando queremos uma representante feminina negra e que não venha de família tradicional, especialmente no Direito.

O que penso ser importante então para nosso Tribunal Constitucional? Primeiro, a representatividade das várias áreas do direito, já que para o Supremo acorrem todas as matérias, e cada magistrado ou advogado especialista tem muito a contribuir com a cultura e a especificidade da área de conhecimento. Penso no enriquecimento que juntou ao Supremo o ministro Fachin com sua expertise no Direito Civil e a ministra Weber com o Direito do Trabalho.

Depois, é relevante a representatividade do escolhido ou da escolhida, seja étnica ou de gênero ou de classe. E tem enorme importância ter um ministro ou uma ministra negra. Os negros não podem ser tratados como alvos do sistema jurídico e também incapazes de o conduzir. Aliás, que falta faz a representatividade de cor agora que o Supremo discute a constitucionalidade do “perfilamento racial” – quando a polícia escolhe pela cor da pele aquele que será sujeito de uma busca pessoal.

E aí, também vamos para a questão de gênero, porque a representatividade geral da sociedade ainda é muito adversa, especialmente às mulheres negras, e sabemos como funciona o racismo estrutural ao se esconder atrás da meritocracia. A meritocracia é quase sempre a naturalização de uma dominação viabilizada por relações de poder desiguais na sociedade.

Os debates sobre o melhor perfil para o próximo ministro ou ministra do Supremo precisam vencer também a cobrança por neutralidade da escolha, como se todas escolhas, na esfera de quem escolhe, não ocorressem de acordo com suas experiências de vida, origem social e visão de mundo que são pessoais e únicas. Se até a inteligência artificial tem vieses, que dirá aqueles que a programam.

A consequência disso é que optar por critérios meritocráticos, como já argumentei, não é uma decisão neutra ideologicamente. É uma escolha que pressupõe um grupo de escolhidos e exclui outros. Então, um presidente social-democrata tem que saber que certas escolhas são incompatíveis com um país mais justo.

Magistradas, membros do MP e advogadas que propagam o punitivismo (sempre hipócrita porque dirigido ao pobre, maquiando o Direito Penal do inimigo) não podem se adequar ao momento. Do mesmo modo, juristas e magistradas que medeiam a decisão judicial pela lógica da teoria econômica do Direito. Estas nunca vão fazer justiça.

A nota aqui deste portal que citei no início do texto (“Supremo precisa de negros para combater o racismo”) anota uma declaração da desembargadora Maria Ivatônia Barbosa dos Santos, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, reproduzida da reportagem da Folha de S. Paulo “Cadê a juíza? Magistradas negras falam sobre racismo velado em suas trajetórias”. Quem puder ler, vai encontrar por lá carradas de razão para concordar com este artigo.

Então, espero que ao final, seja escolhida uma pessoa competente cientificamente, sensível socialmente, do sexo feminino e que se torne a primeira ministra negra do Supremo. Que Lula tenha a coragem que Biden teve em 2022 de quebrar esse paradigma na Suprema Corte dos Estados Unidos. Lembro que a escolha do então desconhecido Joaquim Barbosa para o Supremo, ex-faxineiro, hoje uma unanimidade, foi recebida com escárnio.

A tarefa de Lula, agora, é nos fazer uma boa surpresa novamente. Penso que essa contribuição deve ser sempre e em alguma media revolucionária.

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