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Reminiscências

TE CARTO DESDE MENINO

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Autor/Imagem:
Diogo Bueno - Foto de Arquivo

“Gostava de música americana, ia pro baile dançar todo fim de semana” assim começa Conexão Japeri, o álbum de estreia de Ed Motta, lançado em 1988, o mesmo ano da nossa “Constituição Cidadã”. Era o país respirando aliviado, reencontrando sua voz, reafirmando direitos, sonhos e o compromisso com a democracia recém-reconquistada.

Vejam só, naquele Conexão Japeri, o menino Ed Motta, no auge dos seus 17 anos, já mirava horizontes que ultrapassavam fronteiras. Em Manuel, ele confessava que “Se fosse americano, minha vida não seria assim.” E seguia, embalado pelos conselhos da avó, como quem repete dia após dia “o mundo é fabuloso; o ser humano é que não é legal”. Avó não está de toda errada.

Não bastasse ser americano a opção para o pobre Manuel, continua sugerindo que “Se eu fosse um político, minha vida não seria assim”. Menino visionário esse tal de Motta, não! Bom, o fim, da canção, todos sabemos, Manuel, foi para o céu.

No mesmo 1988, ano em que o Brasil ainda tateava sua nova liberdade, Zeca Pagodinho, aos 29 anos de riso fácil e sabedoria de botequim, lançava Jeito Moleque como quem anuncia mudança no ar. E logo na canção moldada por Arlindo Cruz, Beto Sem Braço e Serginho Meriti, surgia um recado antigo, desses que atravessam o tempo sem perder o sabor “Te carto desde menino, a gente ainda era pivete. No tempo de Juscelino, você já pintava o sete. Seu papo de escancarar faz parte de outra era; por isso vem devagar, sai pra lá, manera, mané”

Ah, como acho bonita a expressão “Te carto desde menino”. Há nela uma espécie de verdade solar, uma intimidade antiga. Quando coloco os discos para ouvir, parece que há tempos sabemos quem é quem. Enquanto uns, deslumbrados peça vida americana acham elegante cantar apenas em inglês e destratar a própria equipe diante do público (eu sei, eu vi, eu estava lá), outros, pelo conselho repleto de afeto antigo, seguem mostrando sua grandeza em atitudes, morando no mesmo lugar, divide o mesmo chão e ainda cede seu terreno para criar uma horta comunitária e dividir o pão.

Enquanto uns 17 já gravavam disco, outros já carregavam respeito entre os bambas do samba e a nossa Constituição Federal, conquistada com luta, suor e sangue, era apenas uma recém-nascida, eu era era apenas um menino, sem ter completado sequer dez anos de vida. E acreditem ou não, tem outros personagens nessa história que em 88 sequer haviam chegado ao mundo para testemunhar tudo isso.

Por outro lado, porque todo vinil guarda segredos no lado B, em 2017, Criolo, artesão da palavra e guardião da nova geração, fiel aos passos de “Pisa com eu pisei”, fez girar o seu Espiral de Ilusões, prensado em sulcos de memória e resistência. Nesse tempo, já caminhavam pelo mundo outros Diogos, outros Zecas e, sobretudo, muitos Mottas. E a nossa Constituição Nacional, aquela que outrora engatinhava, agora com a mesma idade que Zeca Pagodinho tinha ao lançar Jeito Moleque, enfrentava dias ásperos, era empurrada, golpeada, pisoteada mas resistia, teimosa, como quem ainda acredita no porvir, como quem espera a próxima faixa.

E quanto ao por vir, não sei. O futuro é esse vento que muda de direção sem pedir licença, é ingovernável como o fogo. Só sei, como avisa Criolo, que “Eu não quero viver assim, mastigar desilusão. Este abismo social requer atenção. Foco, força e fé, já falou meu irmão. Meninos mimados não podem reger a nação.”

E, “Para Não Dizer Que Não Falei Das Flores”, encerro estas linhas tortas oferecendo um tesouro em forma de vinil, um disco raríssimo, joia quase mítica, que narra a saga de outro Manuel, um vaqueiro que, tomado pela justiça que nasce da dor, foge com a esposa depois de enfrentar o coronel explorador. Ouçam, com o coração aberto, a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol interpretado por Sérgio Ricardo, e letras de Glauber Rocha. É Brasil em grito e silêncio ao mesmo tempo.

E já que falamos de Deus e do Diabo, deixo uma última inquietação dançando no ar, que fetiche louco é esse que acomete esse bando de meninos mimados pela outra nação? Muitos, inclusive, até se mudam, seja por fuga ou opção.

Beijo no coração!

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Diogo Bueno. Internacionalista de formação, Gestor Cultural de vocação e Músico de coração.

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