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Flagrante materno

Tempo passa e deixa pra trás a vida nos subúrbios

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Reprodução

Sem funk, rap, música sertaneja e pagodes sem graça para atazanar meus ouvidos, o rockabilly e um forró a la Luiz Gonzaga eram as melhores serenatas dos companheiros de juventude dos apinhados subúrbios do Rio de Janeiro. Entre um cuba libre e um rabo de galo, o que tinha de melhor naqueles tempos sisudos de ditadura era a criatividade. Apesar de viver assustado com o tal alemão, o cabuloso Alzheimer, até hoje me mantenho criativo e suspirando. Graças a Deus. Mesmo sem Google, Facebook, Instagram e Telegram, desde aquela época conseguia entender que a sombra do branco é igual à do negro. Como dizia o jornalista Aparício Torelly, o nosso Barão de Itararé, saiba com quem andas e te direi se vou contigo.

Fui com os bons e com eles estou até hoje. Morei em casa com telhado comum, pois, como pacifista convicto, sempre me recusei a viver formalmente em um edifício de cimento armado. Mais velho, fui obrigado a rever alguns valores, entre eles o de literalmente defecar na cabeça do vizinho de baixo. Obviamente que, para os de cima, a recíproca é verdadeira. Frios, calculistas e banalizados pelos empreendedores modernos, os apartamentos são as melhores e as piores invenções do ser humano. Moro em um, mas adorava minha casa no subúrbio do Rio Janeiro. Eram somente dois dormitórios e um banheiro para cinco pessoas. A gente se virava como podia. Eu sofria quando queria partir para o cinco-contra-um.

Nada de anormal, considerando os cafofos da Copacabana dos meus tempos de contínuo (oficce boy) no Centro da cidade. Em kits de 20 ou 30 metros quadrados, nunca mais do que isso, chegavam a morar de dez a 15 pessoas. A divisão era por turnos: manhã e tarde, tarde e noite e madrugada. Tristes, incômodos, terrivelmente calorentos e muito mal cheirosos. No entanto, a turma dos chamados cortiços era feliz. Só o prazer de morar defronte à Princesinha do Mar já era prazeroso. Dali para Ipanema, Leblon, Gávea, São Conrado e Barra eram dois pulos: uma para saltar o Morro do Cantagalo e outro para sair vivo do Pavão/Pavãozinho. Foi em um desses cafofos que pereceu o famoso cartunista Péricles Maranhão, criador do não menos famoso Amigo da Onça, personagem publicado na revista O Cruzeiro.

Caricato até na morte, Péricles morreu asfixiado em 31 de dezembro de 1961, um domingo à noite. Ele abriu o gás do apê, mas, antes, fixou na porta um cartaz onde se lia: “Por favor, não risquem fósforos”. Um dia falarei mais sobre Péricles. Vivíamos como podíamos, mas Deus nos ajudava. Era um olho no padre que servia os meninos dadivosos com pão e mortadela e outro na missa celebrada ecumenicamente no terreiro do Candinho, em Campo Grande, onde só entravam entendidos, liberados, pacifistas, garotos egressos de internatos, auxiliares de pedreiro com luvas coloridas e passistas de escolas de samba ainda em estágio probatório. Tardiamente, confesso que, sob os auspícios da mão santa e da prece forte do mestre Candinho, foi no terreiro, defumado com incenso de alfazema e benjoim, a primeira e última vez que quase comunguey.

Fui “salvo” do batizado comungueytório pela gritaria dos discípulos da vizinha igreja presbiteriana. Daí, já saindo da adolescência para a juventude, parti para acasalamentos mais ortodoxos e menos heterodoxos. Antes, porém, não conseguia esquecer o flagrante de dona Guigui, minha disciplinadora e retilínea mãe. Na humilde residência de dois dormitórios, apenas um banheiro, poucas posses e alguma alegria, faltava conforto, mas sobravam buracos nas portas sem tramelas. A cama com colchão de crina de cavalo manco e cego servia de esconderijo para minhas três revistas masculinas usadas para o descabelamento do palhaço, o popular ato masturbatório. As virgens eram sempre as mesmas. A vontade é que não passava nunca. Obviamente que o pequeno banheiro era o cenário ideal para o exercício de minhas pouco republicanas artes manuais.

O flagrante ocorreu em um desses dias de leitura profana. Depois das visões pra lá de estimulantes, adentrei o banheiro sem trinco e estacionei a mão direita dormente sobre o maçarico em chamas. Entretido no frenesi bocagiano, não percebi a entrada de minha mãe que, aos gritos, perguntou o que eu estava fazendo. Com cara de pastel de pera, respondi na bucha: Mãe, eu lavo as partes pudendas na velocidade que eu quero. Acho que sequer consegui completar a frase. Em dias de chuva forte, é comum sentir o zumbido decorrente do safanão no pé da orelha. Doeu, mas até hoje lembro da alegria de ser feliz com as então mulheres dos meus sonhos. Era um sonho lascivo, mas muito mais romântico do que as atuais novelas das sete. Eita época boa. Estou recuperado e preocupadíssimo com um dos últimos avisos da Organização Mundial da Saúde sobre a permanência do vírus da Covid 19 nos mortos. Morro de medo. Por isso, nunca esqueço de lavar as mãos após urinar.

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