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Dona Lia

Testemunha silenciosa

Publicado

Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Ninguém fica pra semente, dizem. Será mesmo?

Dona Lia era uma senhora de 73 anos, mãe e avó dedicada. Seu filho tinha adorado os doces que fazia e se encantado com suas frases de espírito, sempre carregadas de um humor ácido; uma geração depois, seus netos haviam sentido o mesmo deslumbramento gustativo e intelectual.

Mas um dia, aos 76 anos, dona Lia travou. Estava sentada e assim permaneceu, quieta e muda. A família custou a perceber que havia algo errado, a matriarca não raro se perdia em devaneios. Só notaram quando o cheiro acre de urina tomou conta do ar e uma poça formou-se no chão.

Os médicos, chamados às pressas, não conseguiram apresentar um diagnóstico definitivo, limitando-se a descartar algumas possibilidades.

Não, a paciente não sofrera um derrame ou um AVC. Não, não se tratava de variante alguma de demência. Um deles resumiu:

– Ela travou, foi tudo – e, numa frase elegante (era poeta nas horas vagas), acrescentou:

– Tornou-se uma testemunha silenciosa da vida a seu redor. Mas há inteligência por trás de seus olhos mortiços.

O filho e a nora encarregaram-se dos cuidados com a velha. Ela assistia, impassível, às constantes demonstrações de carinho de duas gerações.

Mas cuidar de um inválido cansa, pior, dá gastura. Quatro meses depois, o filho decidiu colocá-la em um asilo, e a esposa silenciou seus débeis protestos, deixando-se docemente convencer do acerto dessa decisão.

Quanto aos filhos adolescentes do casal, ora, tinham uma vida a descobrir, hormônios em ebulição, não iam ficar regando uma planta, fazendo sala para uma avó que se tornara um vegetal.

E assim dona Lia foi para uma clínica para idosos. As visitas dos familiares, de início semanais, foram rareando, até ela ficar meses seguidos sem ver o filho, a nora e os netos. Ela acomodou-se, em silêncio, à nova situação; seus olhos mortiços mas sempre inteligentes passaram a acompanhar as novas rotinas de cuidados de que era objeto.

E o tempo passou. O filho morreu, depois a esposa, os adolescentes tornaram-se homens e mulheres que formaram suas próprias famílias. E a velha no asilo, que já havia mudado duas vezes de dono, esquecida como um brinquedo quebrado, testemunha silenciosa de uma vida que empobrecia a olhos vistos a seu redor.

E então, mais de 40 anos depois de haver travado, dona Lia acordou. Quer dizer, destravou. Deu um bocejo, espreguiçou-se e pediu um copo d’água à cuidadora, que quase desmaiou de susto. Enquanto os responsáveis pelo asilo telefonavam para os familiares – um dos netos, os outros dois já haviam morrido –, a velha de no mínimo 116 anos examinou-se em um espelhinho.

Viu um rosto enrugado, porém não mais do que no dia em que travara. Viu braços flácidos, porém não mais do que há 40 anos. Bateu os pés no chão, e sentiu que ainda havia força em suas pernas. “Estou em plena forma”, pensou. “Acho que aguento sem problemas até a próxima, digamos, soneca prolongada”.

Deu um sorriso de poucos dentes, abriu bem os olhos, simulando espanto – puro charme, estava mais ligada do que nunca – e pronunciou a frase que se tornaria famosa, escutada pelos funcionários e reproduzida em todos os jornais que se apressaram a cobrir o caso:

– Quem sou? Onde estou? É tudo tão estranho…

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