O Santos de Pelé
Tia Rita, o futebol e eu
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Meu pai, embora gostasse de assistir a jogos, não tinha predileção por nenhum clube de futebol. Achava irracional permitir que a derrota de um time estragasse seu final de semana. Hoje eu dou razão a ele, torcer não tem, de fato, nada de racional, é algo completamente emocional. A maior emoção frívola é ver seu clube ganhar um clássico ou, mais ainda, ser campeão, pois como diz Nelson Rodrigues: “Entre as coisas sem importância o futebol é a mais importante”. Com meus 7 ou 8 anos de vida, no entanto, não entendia nada disso, apenas me sentia frustrado, pois todos os meus amigos torciam para o mesmo time de seus respectivos pais, mas eu não tinha como fazer isso. É aí que surge uma personagem inusitada: tia Rita.
Antes, porém, de contar o que tem tia Rita a ver com a história, é preciso dizer quem foi ela, que importância teve na minha vida e na dos meus irmãos, assim como, e principalmente, nas vidas de minha mãe e de seus irmãos e, finalmente, na de todos os nossos parentes pelo seu ramo da família. Tia Rita nasceu em uma fazenda no interior de São Paulo, no ano de 1890, era a filha do meio entre 11 irmãos sem contar alguns que não vingaram. A caçula dessa família era minha avó, Veridiana.
Veridiana, mãe de 4 filhos pequenos, esperando o quinto, com a idade de 30 anos, em 1931, faleceu tragicamente de tétano neonatal ao ter o dedo perfurado por uma agulha de tricô, perdendo também o bebê. Naquele tempo, embora já existisse a vacina contra a bactéria Clostridium tetani, descoberta em 1924 por um grupo de cientistas alemães liderados por Emil von Behring, as campanhas de vacinação tinham alcance muito limitado, em especial, atingiam em muito menor escalas as pequenas localidades de interior, pois eram muito centralizadas. Assim, tia Rita assumiu a criação das quatro crianças. Minha mãe, com apenas 8 anos, a mais velha.
Ǫuando meus pais se casaram, em 1950, tia Rita, pela proximidade que tinha com a sobrinha, veio morar com eles. Minha mãe, já naquela época, trabalhava como professora primária e, na parte do dia em que permanecia dando aulas, deixava os 4 filhos, à medida que foram nascendo, aos cuidados da tia. Portanto, mais do que tia avó, foi propriamente nossa avó materna. Mas, de todo modo, era conhecida como a “tia Rita”, não somente nossa e de todos os parentes já citados, bem como dos primos, dos primos dos primos, dos primos dos primos dos primos e de todos nossos amigos.
Além de ser uma pessoa extraordinariamente generosa, tratava toda essa gente com muito carinho e doçura; doçura tanto no sentido afetivo como no literal, pois era exímia fazedora de vários tipos de guloseimas, sendo seu doce de leite a preferência das crianças e objeto da nossa lembrança até os dias de hoje.
Mas esse texto é sobre futebol, e ela não só apreciava o esporte, como desde jovem se tornou torcedora apaixonada do tradicional Clube Paulistano. O futebol no Brasil, como todos os demais esportes ainda o são até hoje, era amador até 1930, quando foi profissionalizado.
Todos os grandes clubes aderiram à nova orientação, somente o Paulistano resolveu não abraçar essa condição, pois era contra a remuneração dos atletas, acreditando que isso inviabilizaria suas finanças, ficando impedido de participar de todos os torneios já existentes e dos surgidos posteriormente. O clube, então, resolveu intensificar os investimentos em outras modalidades e extinguir a equipe de futebol, deixando sua grande torcida “órfã”.
Mais ou menos, nessa mesma época, também na capital paulista, foi fundado o time do São Paulo Futebol Clube. Pela similaridade, ao menos em relação ao nome, e por ser também originário da cidade, o novo time herdou como “espólio” parte da torcida do extinto Paulistano. Vários, entretanto, sem muita convicção, como era o caso da nossa tia. Eu, bem pequeno, mas me lembro de pessoas comentando o fato de ela ser uma são-paulina pouco entusiasmada; o que a cativava, na verdade, era a seleção Brasileira.
Em 1958 aconteceu a 6ª edição da Copa do Mundo de Futebol, na Suécia e o Brasil, já ostentando o epíteto de “Canarinho”, possuía um time imbatível, mas ainda engasgado com a frustrante derrota por 2 X 1 na final para o Uruguai em 1950, na 4ª edição, justamente quando a copa ocorreu no nosso país. O episódio, até hoje, é lembrado como o “Maracanazo”, em alusão à tragédia que se abateu no dia 16 de julho daquele ano com a derrota da nossa seleção (ah, por coincidência, o mesmo dia em que meus pais se casaram), o título foi para o país vizinho, dando origem à grande rivalidade entre os dois escretes. O jogo aconteceu na inauguração do estádio Jornalista Mario Filho, no Rio de Janeiro, o popular Maracanã, construído especialmente para a realização da copa, para dar lugar ao jogo da final.
Em 1954, na então Alemanha Ocidental, não tivemos sucesso novamente, ainda que, nesse ano, para superar o trauma e talvez até por superstição, o uniforme branco, usado até então, foi abandonado e adotada a camisa amarela (hoje sequestrada) com calções azuis.
Na Copa da Suécia, a seleção, entre outros craques, tinha Djalma Santos, Zito, Didi, Garrincha, Vavá e, no terceiro jogo da fase de grupos, contra a União Soviética, a estreia de um menino negro de 17 anos – não entrou nos dois primeiros jogos, pois estava contundido – que encantou o mundo e não saiu mais do time. Seu nome: Pelé. Ele, além de várias jogadas geniais, fez seis gols no torneio, dois deles no jogo final contra a seleção anfitriã, na vitória por 5 X 2, que selou a conquista do nosso primeiro título mundial.
O segundo gol de Pelé nesse jogo é um dos mais belos de todas as copas e possivelmente o mais reproduzido por filmes ou fotos de todos os gols marcados em todo o mundo até hoje, cuja descrição é mais ou menos a seguinte: na área adversária, o futuro Rei, marcado pelo zagueiro Bengt Gustavsson, recebe de Garrincha um cruzamento na medida, mata a bola no peito e, antes que chegue ao chão, dá um toque por baixo, ela sobe mais de dois metros e meio, quase na direção vertical, encobrindo o adversário num chapéu maravilho, e, novamente, sem deixar chegar ao chão, Pele faz o arremate para a rede do goleiro Kalle Svensson, que não teve como reagir, convertendo o placar em 3 x 1, a Suécia marcaria mais um gol e o Brasil mais dois.
Eu tinha apenas três anos de idade e, naturalmente, não tenho memória desses gols e nem de outros detalhes dos jogos, que vim a conhecer posteriormente, mas me lembro claramente de alguns fatos adjacentes.
Na sala de casa havia uma cristaleira e, sobre ela, uma rádio vitrola. Não tínhamos TV, mas, mesmo se tivéssemos, os jogos não eram televisionados, apenas transmitidos pelas rádios, e, diga-se, o som que chegava era de péssima qualidade. Assim, para se conseguir ouvir alguma coisa, era necessário se aproximar bem do aparelho. O móvel não era muito alto, mas tia Rita, com menos de 1,50 m de altura, tinha dificuldade em alcançar, obrigando-a a ficar nas pontas dos pés para colar ouvido. Ǫuando o Brasil marcava um gol, ela comemorava empolgada, mas se fosse de Pelé, a comemoração era muito mais efusiva e ela gritava o nome dele. Estas cenas, até hoje, permanecem gravadas em minha retina, e embora seja uma lembrança feliz, eu não compreendia muito bem o que se passava.
Outras características da tia eram ser altamente nacionalista, ufanista, e, quando gostava de algo, não tinha meio termo, se deixava apaixonar perdidamente. Reverenciava cada um dos jogadores e até mesmo o técnico, o bonachão Vicente Feola, mas com Pelé era diferente, posso dizer sem exagero, ela o venerava. Daí a passar a ler e ouvir tudo a seu respeito e, por consequência, interessar-se pelo time do qual fora pinçado para engrandecer uma seleção já espetacular, o Santos Futebol Clube, foi praticamente instantâneo. Ela finalmente conseguia superar o sentimento amargo experimentado há 30 anos, transferindo seu amor vão pelo Paulistano ao “glorioso Alvinegro Praiano” como diz um verso do seu hino nº 2, “Leão do Mar”.
Desse modo, pela importância que ela tinha em minha vida e não podendo torcer para o time de meu pai, quando comecei a me interessar pelo futebol e me sentia perdido na busca de um para chamar de meu, logo cheguei à conclusão de que deveria adotar o dela. Assim, torcer passou a ser mais um elemento a nos aproximar. Um tema a mais para conversarmos e uma pareceria para ouvir pelo rádio ou assistir pela TV, – o pai havia comprado uma no início dos anos 1960 – sendo a maioria das vezes reprises transmitidas por vídeo tapes.
Assim, vimos juntos nosso amado Peixe ser bicampeão da libertadores, o primeiro campeão e bicampeão mundial do Brasil e tantos títulos paulistas, do Rio/São Paulo e dos campeonatos e torneios nacionais, além de troféus e medalhas internacionais aos borbotões em razão das inúmeras excursões realizadas pelo mundo todo a convite de vários países. Só não foi comigo assistir jogos no Pacaembu, no Urbano Caldeira, a popular Vila Belmiro e em outros estádios pelo estado, pois era muito caseira e detestava tomar conduções, só se aventurava a sair às ruas se fosse para um lugar próximo, às vezes nem tanto, mas ia sempre a pé. Tomar um ônibus, taxi, bonde, ou seja lá o que fosse, só em último caso.
Para acentuar nossa paixão, as equipes montadas pelo Santos desde a segunda metade dos anos 1950, passando por toda a década de 1960 e chegando até 1974, quando Pelé pendurou as chuteiras pela primeira vez, eram simplesmente espetaculares. Em 1975 ele retomou a carreira indo jogar no New York Cosmos e ensinar o futebol para os gringos, que eles insistem em chamar até hoje de “soccer”. Pelé ficou por lá até 1977 e, durante esse período, nosso querido “Peixe” entrou em uma profunda crise, com a saída do “Rei”, parece que os grandes craques passaram a recusá-lo. Nos consolávamos acompanhando a carreira do nosso ídolo nos gramados estadunidenses.
Assim foi que passei minha infância e adolescência vendo aquele time maravilhoso de tantos craques – não vou citar nomes para não alongar demais o texto, e, talvez, deixar de mencionar um nome que fosse, de cada um deles – fazendo história e vencendo partidas memoráveis, sendo reverenciado por todos os países pelos quais passava, e não foram poucos, fazendo coisas incríveis dentro de campo e fora dele, parando até guerras.
Depois da saída de Pelé, o Santos teve altos e baixos, mas tia Rita, um ano antes de falecer, teve o prazer de ver resgatado o bom futebol com a primeira geração dos apelidados “meninos da Vila”, jovens garotos geniais formados nas categorias infantis e juvenis, sendo campeão do Paulistão pela primeira vez após o fim da fase de ouro, no campeonato de 1978, mas cuja decisão contra o São Paulo FC, aconteceu em 1979.
Se tia Rita ainda vivesse e tivesse a lucidez de outros tempos, teria visto mais duas gerações de “meninos da Vila”, os campeões brasileiros em 2002, contra o Corinthians e a de 2010 com Neymar e Ganso, que conquistaram em 2011 o tri da Libertadores de América. Hoje, no entanto, estaria triste com o fraco desempenho do nosso alvinegro, que chegou a cair para a segunda divisão em 2023, mas já otimista com o futuro, pois esse era mais um dos traços de sua personalidade.
Mas a verdade é que também me sinto igualmente triste, mas com o mesmo otimismo herdado (ou aprendido) dela. De resto, só posso agradecer por ter sido tão importante na minha vida e me ensinado tantas coisas como amar o glorioso SANTOS FUTEBOL CLUBE, mas aquilo foi em uma época romântica, em que o “esporte bretão”, como se dizia, era muito mais amor do que interesses comerciais e financeiros.