Gatos tangueiros
Tita e Polaco cumprimentaram os presentes com um leve aceno do focinho
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Tão logo desembarquei no Aeroporto Internacional de Ezeiza, em Buenos Aires, tomei um táxi, fui pro meu hotel, encarei uma ducha, vesti umas roupícias menos amassadas e saí pra rua para cumprir meu primeiro compromisso inadiável: prestar minhas homenagens aos gatos tangueiros, Tita e Polaco.
Entrei no apartamento do casal de amigos, uma brasileira e um argentino, onde a dupla felina se apresenta. Tita me olhou com desdém e desviou o focinho; Polaco me encarou com olhos maus e miou:
– Hola, che, que hacés acá?
Mentira minha, o comentário dele foi pra lá de ofensivo. Juntando gíria portenha e chilena, o desbocado perguntou:
-Hola, boludo. Que huevás acá, huevón?
Não vou traduzir, se quiserem, guglem, perguntem a um amigo argentino ou chileno, e vamos em frente.
-Me gustaria apreciar vuestra belleza y arte – respondi educadamente. Isso pareceu acalmá-los.
Na hora do espetáculo, Tita e Polaco dignaram-se a cumprimentar os presentes com um leve aceno do focinho, foram para campos opostos da sala, aproximaram-se caminhando a lo malevo, na malandragem, deram-se as patinhas e começaram a tanguear.
Vocês já viram dois gatos dançando tango? É meio deprimente. Eles têm coxas gordinhas, ou seja, nada da esbeltez e elegância sensual dos cumparsitos e cumparsitas portenhos. Mas não é todo dia que se vê uma cena surreal daquelas e, quando soaram os últimos acordes do bandoneón, aplaudi com entusiasmo.
Em seguida, as duas celebridades trocaram miados com os humanos presentes e, em raros casos, roçaram suas pernas. Mas, quando chegou a minha vez, não recebi (mereci?) tamanha honraria. Longe disso.
Lembrei-lhes que havia escrito um conto inspirado neles, que minha amiga, escrava deles, havia lido para os dois. Eles lembravam, e não haviam gostado nem um pouquinho das promessas de meus gatos de invadir Buenos Aires e baixar a porrada.
-Y como están tus gatos? – perguntou Polaco com um sorrisinho perverso. – Siempre gambeteando la pobreza en la casa del Caduzón? – Ele, aparentemente, conhece o tango Mano a mano de fio a pavio.
Tita miou e gargalhou até perder o fôlego, como se aquelas palavras felinas fossem as mais ferinas do mundo.
Aquilo me deu uma enorme gastura. Driblando a pobreza na minha casa? Chico Buarque ensinou urbi et orbi que os gatos nascem pobres e livres. Gatos não precisam de dinheiro – nem os meus, nem Tina e Polaco, nem os do restante do planeta. E a vida dos meus cinco era bem semelhante à deles: boa ração, escravos carinhosos, reclusão em um apartamento – lindo, no caso deles; detonadaço, no meu –, mas gatos, que eu saiba, não ligam muito pra isso, têm preocupações maiores como se lamber e encantar os escravos que os adoram.
-Vos sos todos unos bacanas – respondi com ironia, mostrando ao malandrinho que também conhecia o tango Mano a mano. Polaco miou em seco mas contra-atacou.
– Sos brasileño, verdad? De San Pablo, no es mismo? E forçou um portunhol com um sotaque brasileiro horrível – Noix vamox invadir sua playa.
Tudo culpa do Ultraje a rigor.
Ultrajado estava eu mas tentei explicar que San Pablo não tem playa, é uma espécie de Buenos Aires maior, mais feia e mais abrutalhada. Eles simplesmente não acreditaram.
Dessa vez, foi Tita quem contestou.
– San Pablo es en Brasil, verdad? Brasil es – e a gatinha cantarolou no ritmo de Jorge Benjor quando ainda se chamava Jorge Ben – un pa-ís tro-pi-cau. – E inflamada concluiu: – Pa-ís tro-pi-cau tiene playa, carajo! San Pablo tiene playa!
Polaco retomou o ataque, sempre recorrendo a Mano a mano:
– Noix vamox invadir sua playa. Y invadir sua casa, y hacer con tus gatos como juega el gato maula con el mísero ratón.
Chamar meus gatos de ratones e torturá-los como fazia o gato malvado era demais. Adaptei Adiós, Pampa Mía e fuzilei:
-Adiós, Tita y Polaco, adiós, doy buenas noches y me voy. – Mas era pouco, e emendei uma aplastradoura citação de Mano a mano, enquanto fuzilava Polaco com uma mirada capaz de tontear míseros ratones:
– Los favores recibidos creo habértelos pagado. Y si alguna deuda chica sin querer se hé olvidado, en la cuenta de los otarios que tenés se la cargás.
Saí enquanto Tita e Polaco arquejavam, tentando recordar alguma citação tanguera ofensiva para miar e rosnar contra mim.
Então é isso. Meus gatos estão ameaçados pelas perigosas feras platinas. O pior é que não conhecem rua – com a exceção de Lua, protagonista do conto Conversa de gatos, já publicado pela Notibras – jamais brigaram de verdade. Periga ser um massacre.
Tudo indica que vem aí um novo confronto Brasil x Argentina. Vamos nos preparar para o pior, que os hermanos são barras bravas. E se a pátria amada precisar da gataiada… tadinha da pátria amada!