Polos tecnológicos
Trabalho remoto no Nordeste vai do Sertão à tela global
Publicado
em
Em uma pequena cidade do interior do Piauí, Maria Clara, 27 anos, começa o expediente às 9h da manhã diante do notebook. Do outro lado da tela, seu chefe está em São Paulo, e os colegas dividem-se entre Recife, Fortaleza e até Lisboa. “Nunca pensei que conseguiria trabalhar para uma empresa de fora sem sair daqui”, diz, enquanto a brisa do sertão entra pela janela. A cena que parecia improvável há poucos anos hoje se multiplica em centenas de lares nordestinos.
Desde a pandemia de Covid-19, o trabalho remoto deixou de ser exceção e passou a compor a rotina de milhares de profissionais na região. Segundo dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Nordeste registrou crescimento expressivo na oferta de vagas à distância, sobretudo em setores como tecnologia da informação, marketing digital, teleatendimento e educação online.
Embora a preferência declarada por parte dos nordestinos ainda penda para o modelo presencial, pesquisas de mercado apontam que o formato remoto ganha espaço principalmente em cidades médias e no interior, onde antes as oportunidades eram escassas.
A mudança vem produzindo efeitos na economia local. Em municípios do interior do Ceará, por exemplo, estudos mostram que o home office mantém uma fatia maior da renda circulando dentro da cidade, já que trabalhadores não precisam migrar para capitais ou para o Sudeste em busca de emprego. Restaurantes, pequenos comércios e prestadores de serviço relatam aumento no consumo, criando uma cadeia de impacto positivo.
Além disso, o teletrabalho contribui para reduzir desigualdades regionais históricas: jovens que antes enfrentavam o dilema de migrar para centros urbanos em busca de emprego agora vislumbram futuro sem abandonar sua terra natal.
Mas o avanço não é homogêneo. Ainda há obstáculos significativos. A conectividade segue como barreira em muitas áreas, assim como a qualificação profissional em setores mais demandados. “A internet é instável e muitas vezes precisamos improvisar para não perder reuniões”, relata João Paulo, analista de TI em Caruaru (PE).
Outro ponto é cultural: parte da população ainda associa produtividade à presença física no escritório. Isso explica porque, mesmo com os benefícios, o Nordeste lidera pesquisas nacionais quando o assunto é preferência pelo trabalho presencial.
Cidades como Recife, Fortaleza e João Pessoa vêm desempenhando papel estratégico. O Porto Digital, em Pernambuco, e o hub tecnológico de Fortaleza consolidam-se como ecossistemas de inovação, atraindo startups e multinacionais. A tendência é que esses polos funcionem como “âncoras” para espalhar a cultura do trabalho remoto por toda a região.
Especialistas acreditam que a próxima década será decisiva. Com investimentos em infraestrutura digital, capacitação em tecnologia e incentivos para startups, o Nordeste pode transformar a modalidade remota em um vetor de desenvolvimento socioeconômico.
“Estamos diante de uma oportunidade histórica. O trabalho remoto não é apenas um modelo de contratação: é um instrumento de inclusão e de permanência dos jovens em suas comunidades”, avalia a economista Clara Souza, pesquisadora da Fundação Getulio Vargas.
O que começou como adaptação emergencial durante a pandemia hoje se desenha como um movimento de transformação profunda no mercado de trabalho nordestino. Entre avanços e desafios, a tela iluminada de milhares de computadores espalhados pelo sertão, pelo agreste e pelo litoral revela um futuro em que talento e oportunidade já não precisam caber no mesmo CEP.