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Encruzilhada

Troca de confidências

Publicado

Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Irene Araújo

O que me causa angústia não é a ausência, mas a incerteza. Certo desconforto. Não é solidão, isso jamais me assustou. Todo mundo é solitário, mesmo na pipoca do carnaval de Salvador.

Pois foi isso que falei para Clarice, que ficou ali em pé, aqueles olhos castanhos lindos me fitando, como se desejasse entender o que se passava na minha mente. Devo ter esboçado um sorriso, já que esse foi o seu próximo gesto. Talvez imaginasse que eu estivesse brincando ou, então, tentando parecer mais inteligente do que sou.

Medíocre. É isso que sou. E não me interprete mal, pois a maioria de nós o é. Diria que praticamente toda a humanidade, tirando uns loucos que conseguem vislumbrar histórias dentro de bolhas de sabão. Por que disse isso? Não faço ideia, mas sei que é uma comparação esdrúxula, ainda mais porque já passei da idade de ficar na praça fazendo bolhas de sabão.

Seria divertido, é verdade. Mas velho que sou… Não tão velho assim, você poderia dizer. Entretanto, logo chegaria um desalmado para acusá-lo de estar fazendo advocacia em causa própria.

Pois é, meu amigo, envelhecemos. Também, quem mandou chegarmos a este mundo há tanto tempo? Como se fosse possível escolher o momento do nascimento… Tolice, perda de tempo, use o termo que você quiser. Nada vai mudar o fato de já termos dobrado o Cabo da Boa Esperança há pelo menos uma década.

Se acumulamos experiência e sabedoria? Para que sermos tão condescendentes com nossa notória decrepitude? Deixemos aos outros o cinismo da contemporização. Somos amigos, não precisamos de autoindulgência.

Clarice disse que me ama. Ama muito. Não duvido nem acredito tanto assim. Há momentos em que posso me fiar cegamente na afirmativa da minha, digamos, quase esposa. Não juntamos as escovas de dentes ainda, cada um possui seu canto, o que me deixa confortável. Você também não sente necessidade de ter o seu próprio espaço? Sim, não refuto que também sinto falta de maior cumplicidade, de compartilhar aquela bacia de pipoca maratonando as séries que ela adora.

Veja bem! Não que não goste de série. Verdade que não gosto, não vou mentir. Nunca consegui pegar um ou dois biscoitos e depois guardar o pacote. Tudo precisa ter início, meio e fim. E esse lance de temporadas, cada uma com aquele monte de episódios… Ih, não nasci para isso. Mas a Clarice ama.

Se emagreci? Você acha? Talvez tenha razão. Não me peso há dias. Mas você deve ter mesmo razão. A Clarice me engorda. Ela sempre tem aqueles horários rígidos para comer. E ai se pula uma refeição… Ih, o mundo parece que vai acabar. Com ela longe, até me esqueço de comer direito.

Café não pode faltar aqui em casa. E sou exigente. Precisa ter qualidade. Sim, um bom café e um bom livro. E paz para degustar os dois.

É verdade, meu amigo. Clarice me ama. Ama muito.

……………………

Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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