Medo, patrimônio imaterial
Tudo mudando, ninguém muda, mas resta uma vírgula de esperança
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As bandeiras mudam. As hashtags mudam. As manchetes correm mais rápido do que os mísseis. Mas o enredo… ah, o enredo parece escrito à mão por um velho general aposentado e guardado em uma gaveta com cheiro de mofo e pólvora.
De tempos em tempos, muda-se o vilão. Sai o Fidel, entra o Putin. Sai o Bush, entra o Zelensky. Saem os muros físicos, entram os digitais. Mas o medo, esse patrimônio imaterial da humanidade, continua sendo a linguagem internacional mais fluente que existe.
Ligamos a TV e lá está ele: o mundo girando, como um carrossel antigo e ferrugento. O discurso da paz se veste de terno e gravata nas cúpulas de negociação, enquanto a guerra dança de botas sujas entre escombros e corpos sem nome.
Eu, filha de um tempo que assistiu guerras pela TV de tubo e agora recebe alertas de bombardeio no Twitter, me pergunto: por que chamamos isso de “progresso”?
Será porque a bala agora é mais veloz? Ou porque a indiferença é mais polida?
Os tratados se assinam com canetas de ouro enquanto crianças procuram comida em meio aos destroços. E a gente aqui, com nossos problemas particulares o aluguel, o boleto, o amor que não respondeu no WhatsApp tentando fingir que não está acontecendo. Porque se eu não vejo, não dói. Se não é comigo, é só uma tragédia genérica, dessas que a gente aprende a ignorar.
A sensação é essa: o mundo muda. Muda o presidente, muda a logo da rede social, muda a embalagem do café, mas ninguém, de fato, muda.
A lógica continua a mesma. Quem tem mais, manda. Quem sofre, espera.
Quem morre, vira número. Quem sobrevive, escreve.
E talvez, só talvez, escrever ainda seja um pequeno ato de resistência.
Um lembrete de que mesmo que tudo continue igual, alguém ainda está prestando atenção. E que enquanto houver palavras, ainda há alguém que acredita que a história pode ter um final menos cínico.
Ou, ao menos, uma vírgula de esperança.