Deslumbramento
Um caso de desejo, que brota com a explosão dos hormônios de adolescentes
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“Eu a olhava, primeiro com o olhar que é apenas o porta-voz dos olhos, mas à janela do qual se debruçam todos os sentidos, ansiosos e petrificados, o olhar que desejaria tocar, capturar, levar consigo o corpo que está olhando e com ele a alma.” Marcel Proust, No caminho de Swann, livro 1 de Em busca do tempo perdido.
Aos 15 anos, Alfredo jamais ouvira falar no romancista francês Marcel Proust, nem em sua obra-prima, Em busca do tempo perdido, e muito menos nas palavras com que o autor se refere à primeira vez em que viu Gilberte, seu primeiro amor. Mas o turbilhão de sentimentos que tomou conta do adolescente paulistano ao avistar Priscila deve ter sido semelhante ao do adolescente francês, ao se deparar com a filha de Swann.
Priscila era uma menina alta e magra, de lindos olhos azuis. Recém-transferida para a escola de Alfredo, foi apresentada por um professor, que pediu que todos dessem as boas-vindas à nova colega.
Alfredo não obedeceu. Ficou em silêncio, olhando-a com abandono, enquanto o resto da turma sorria, ou a cumprimentava, ou fazia comentários maldosos sobre suas curvas (ainda) quase inexistentes. As moçoilas foram as piores, com suas observações na linha “ela parece boazinha” ou “até que ela é bonitinha”. Pura inveja, ciúme antecipado, ressentimento de quem vê surgir uma forte concorrente na disputa pelas atenções masculinas.
Muito mais tarde, Alfredo examinou com vagar suas lembranças do que sentira, ao ver Priscila.
Não era amor – esse sentimento só brotaria depois, para então alastrar-se como fogo em mato seco. E nem atração sexual, a qual se manifestaria mais tarde ainda, com a explosão dos hormônios na adolescência plena. Era antes um deslumbramento. Algo semelhante ao sentimento provocado pela visão de um antigo e delicado vaso de porcelana, que se admira de longe, sem se atrever a tocar e muito menos a ter entre as mãos, com medo de que o descontrole motor típico dessa fase o deixasse cair, quebrando-o em mil pedaços. Por algum tempo, bastou a Alfredo olhar Priscila de longe, deslumbrado. Com isso, o mundo se reencantava. E o melhor era que ela também parecia olhá-lo assim.
Porém rapazes e moças tendem a querer sempre mais (dos franceses da Belle Époque não posso dizer, dos brasileiros dos anos 1980 tenho certeza). A troca de olhares logo deu lugar a uma aproximação, a longos papos que habilmente driblaram a friend zone e desembocaram em namoro. O amor floresceu, os beijos e carícias de Priscila e Alfredo tornaram-se mais ousados, mais exigentes, até que pouco depois de completarem 17 anos (ele era um mês mais velho que ela), foram pra cama pela primeira
vez.
A descoberta do sexo não quebrou o deslumbramento; em vez disso, atribuiu-lhe uma dimensão mais terra a terra, lembrando-lhes que tinham projetos diferentes, estudariam em faculdades diferentes e, nelas, haveria outros jovens homens e mulheres por quem se deslumbrar, com quem transar. Aos poucos, os dois foram se afastando, às voltas com o vestibular, com novas amizades, até se distanciarem de vez.
Três décadas depois, quando Alfredo lia o grande romance de Proust, as palavras que abrem este texto trouxeram consigo as lembranças de Priscila e o deslumbramento que ele experimentara ao avistá-la pela primeira vez. Madeleine visual, texto a despertar memórias de algo que julgara perdido para sempre. Mas não, estava ali, bem perto da consciência, latejando, abcesso de emoções.