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Entrevero de paixões em Santiago do Boqueirão (Parte I)

Um certo Capitão Rodrigues e suas duas noivas

Publicado

Autor/Imagem:
J. Emiliano Cruz - Foto Francisco Filipino

Corria o ano de 1895 quando o presidente Prudente de Morais selou um acordo entre republicanos, os chimangos, e federalistas, os maragatos, colocando fim à chamada Revolução Federalista ocorrida no Rio Grande do Sul ao apagar das luzes do século XIX.

Foi um conflito brutal que dividiu o estado durante quase três anos e deixou muitas feridas de todas as matizes entre os gaúchos.

Aparício Rodrigues tinha servido nas forças federalistas como capitão. Era um típico exemplar do (verdadeiro) mito dos pampas daquela época: fanfarrão, comunicativo, excelente cavaleiro, aventureiro, destemido, galante e bem-apessoado.

Apesar do seu lado ter sido o derrotado na guerra, ele tinha conseguido amealhar uma razoável reserva monetária para a sua bolsa, produto do seu soldo como oficial e das “requisições” para poupar vidas de prisioneiros bem-aquinhoados.

Com o término do conflito, o capitão Aparício precisava dar um novo rumo para a sua vida. Tinha um razoável grau de instrução para a época, tendo sido, antes da guerra, capataz de fazenda em uma pequena comunidade. Todavia, não desejava retornar para a antiga lida, queria conhecer outros pagos, gente nova e se estabelecer em alguma atividade mais nobre.

Durante as operações de guerra, a sua companhia tinha passado rapidamente por uma cidade fronteiriça com a qual muito simpatizara: Santiago do Boqueirão. Gente acolhedora, belas residências, boa comida, mulheres bonitas.

Aparício lembrava de uma em especial que nunca saíra da sua cabeça e dos sonhos mais lúdicos: Deusidete!

Tinha dormido apenas uma noite com ela na melhor casa de tolerância da cidade, mas prometera que voltaria para vê-la assim que a guerra acabasse.

Deusidete era uma jovem morena de gênio indomável, cabelos sedosos, boca carnuda, personalidade de tigresa e corpão violão. Ela fazia jus ao nome que os seus pais haviam lhe dado e, sabe-se lá porque – talvez por um desses acidentes inexplicáveis da vida – tinha aderido à equivocadamente chamada “vida fácil”.

-Uma verdadeira deusa, suspirou Aparício.

No calor dessa lembrança, disse para si mesmo, esporeando o cavalo:

-Alea jacta est! Bora prá Santiago do Boqueirão!

O Capitão Aparício adentrou a cidade e rumou direto para a pensão da dona Ermengarda. Queria tomar um banho redentor, fazer a barba e passar um bom perfume para estar nos trinques, tudo a fim de encontrar a sua amada rapariga na vila das casas das luzes vermelhas.

Ao entrar na casa da luz vermelha número cinco, logo sentiu o perfume de Deusidete. Essa, ao vê-lo, de pronto correu e atirou-se sobre ele, envolvendo-o como um polvo faminto.

No quarto, após os dois terem matado a saudade e revivido a paixão da única e monumental noite que ambos nunca esqueceram, Deusidete, ainda arfando, declarou ao seu amado capitão:

-Nunca mais dormi com ninguém!

-O que? surpreendeu-se, Aparício.

-Depois daquela noite, só faço sala, jogo conversa fora e incentivo os clientes para comprarem bebida. No mais, estava só te esperando, disse Deusidete com os olhos brilhando.

-Que coisa, guria! Não esperava isso… assim tu derruba todos os butiás do meu bolso, confessou Aparício.

-Juntei dinheiro, tenho minhas economias e não preciso mais disso, falou orgulhosamente Deusidete.

Após muitas juras de amor, os amantes combinaram o seguinte projeto de vida: Aparício ficaria morando na pensão da dona Ermengarda e iria pensando em como montar um negócio na cidade. Ao mesmo tempo, procuraria uma morada adequada para o casal se instalar em um futuro próximo.

Depois de despedir-se de Deusidete pela manhã, Aparício foi dar uma volta pelas ruas da cidade. Quase todos os moradores lembravam da passagem do intrépido capitão e da sua companhia pela cidade há quase um ano.

Tinha deixado boa impressão e recebia cumprimentos respeitosos de todos com quem cruzava. Foi então que viu Maitê em uma loja de vestuário feminino. Como que atraído por um imã, aproximou-se da donzela com o melhor sorriso que conseguiu formatar.

-Deus que me perdoe, mas que anjo de doçura, candura e beleza, pensou, aspirando o perfume francês que emanava do corpo da moça.

Maitê, ao avistá-lo na porta da loja, retribuiu o sorriso, corando em seguida.

-Meus respeitos, senhora! Meu nome é Aparício Rodrigues, cheguei ontem nessa querência.

-Sei quem é o senhor, capitão! Muito prazer, sou Maitê, filha do coronel Antônio Bento. Na verdade, senhorita Maitê!

Coronel Antônio Bento, o manda-chuva e homem mais rico da região, pensou imediatamente, Aparício.

-Encantado, senhorita Maitê.

-O capitão pretende se assentar por aqui? Perguntou Maitê, tentando parecer casual e desinteressada.

-Pois confesso que estou pensando no assunto, senhorita. Procuro um ponto para estabelecer algum negócio e aplicar os ganhos dos anos de peleja na guerra.

-Por que não faz uma visita ao meu pai a fim de se aconselhar sobre o assunto? Garanto que será bem-vindo a nossa fazenda.

-Seria uma honra senhorita. Posso considerar isso um convite?

-Claro, capitão! Vá almoçar conosco amanhã, avisarei meu pai que lhe convidei.

-Pois considere marcado, linda dama! Muchas gracias pela sua gentileza, falou Aparício, despedindo-se após beijar a mão de Maitê.

Aparício sentiu-se bafejado pela sorte, mas sabia que logo esse céu azul de brigadeiro poderia ser redesenhado por uma tempestade chamada Deusidete. No entanto, como não era homem de fugir de assombração, desse ou do outro mundo, decidiu ir em frente para ver no que dava o entrevero.

Como cidade pequena nunca guardou notícia fresca em época alguma, o convite da filha do coronel para o recém-chegado capitão logo viralizou nas redes sociais da época: o tradicional e indefectível boca-a-boca entre a elite da comunidade.

Ao saber da inusitada novidade, Gaspar, o gerente da única agência bancária da cidade, praguejou:

-Danação! Logo agora que eu estava me preparando para pedir Maitê em noivado. De onde veio esse maldito capitão para se atravessar no meu caminho?

-O destino tem dessas, respondeu Josias, seu irmão mais novo que acabara de se formar farmacêutico em Porto Alegre.

-E eu já me via como herdeiro das fazendas do coronel, mas agora a coisa pode ter ido para o beleléu, lamentou-se Gaspar.

-Você é bem interesseiro, hein mano? Maitê merece alguém que a ame como marido e não um caça-dotes.

-Ora, não me amole com seus pruridos românticos, irmãozinho! Não vou desistir fácil dessa empreitada.

-Nem conheço esse capitão, mas se Maitê gostou dele e ele também gostou dela, torço para dar certo, replicou Josias.

Apresentando-se para o almoço na casa do coronel, Aparício foi recebido com um iluminado sorrido de Maitê.

-Pai, esse é o nosso convidado, capitão Aparício Rodrigues.

-Muito prazer, coronel!

-Como passa, capitão? Sente-se e vamos prosear um pouco antes do almoço. Aceita um licor?

-Gracias, coronel, aceito sim.

-Bem capitão, não sou homem de dar voltas, então vou direto ao assunto: quais são as suas intenções com a minha única filha?

-As melhores possíveis, palavra de honra, coronel!

-O amigo vai se fixar na cidade? Tem recursos para o seu sustento e, mais importante, o de uma família?

-É o que pretendo, coronel. Não sou rico como o senhor, mas tenho cá meus ganhos e muita vontade de aumentá-los trabalhando honestamente.

-Muito bem, respeito um homem honesto que ganha a vida com o seu próprio suor, e parece que a minha filha faz gosto pela sua pessoa.

-Obrigado, coronel! Herdei esse preceito do meu falecido pai e também vou morrer com ele.

-O senhor tem a minha permissão para frequentar a minha casa, com o devido respeito, bem entendido.

-Eu agradeço a honra coronel e também, com todo o respeito, quero dizer que estou encantado com a sua linda filha.

-Acredito! Mais uma pergunta, o amigo tem experiência com a lida e as coisas do campo?

-Com certeza, coronel! Já fui capataz de fazenda lá pelas bandas de Bagé.

-Isso é muito proveitoso, capitão, pois quero um genro com essas capacidades, se tudo der certo, naturalmente.

Mesmo com a plena consciência dos riscos, Aparício foi se equilibrando entre as noites alucinantes com Deusidete na casa da luz vermelha e as doces e comportadas tardes de noivado com Maitê na fazenda Boa Esperança.

Já, Deusidete, não cansava de perguntar a quantas andava a busca pela morada do casal e quando eles iriam finalmente realizar o sonho de viverem juntos.

Para sorte do galante conquistador, a história com a filha do coronel ainda não havia chegado à casa número cinco da vila das luzes vermelhas.

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O epílogo (parte II) deste folhetim será publicado na sexta-feira, dia 8.

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