NÃO VOLTO MAIS
UM CONSULTÓRIO, UM ESPELHO E A CORAGEM PARA SAIR DO PRÓPRIO LABIRINTO
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Era a manhã de uma quarta feira amena, Gabriel se barbeava vendo-se no espelho com autopiedade. Aos 30 e muitos anos, deveria ser como seus amigos: adulto pleno, bem-sucedido em uma carreira, cheio de experiências interessantes, confiante em si e na vida. Entretanto, suas más recordações da época de adolescência não o deixavam seguir.
Nessa época de jovem, Gabriel e seus amigos flertavam com as garotas bonitas da escola. Notoriamente, os amigos recebiam olharem prolongados e sorrisos encorajadores, e Gabriel ficava à margem, vendo seus amigos vivendo suas experiências e alegrias despreocupadas da fase. Gabriel não era escolhido por ninguém, não era o galã, não era o atleta, não era o popular divertido, não era o nerd que poderia ser útil, não tinha nenhum atrativo que o fizesse ser destaque ao olhar de ninguém. Apesar disso tudo, não era feio, somente muito desinteressante. Sentia-se como uma sombra dentro de sua vivência escolar.
O tempo passou. Rever seus amigos, já adultos, seguros com suas vidas, fases bem vividas, amargava o coração de Gabriel, lembrando-o das oportunidades que não teve e histórias que não viveu. Sentia-se como um grande invejoso, não uma inveja por esta ou aquela pessoa, apenas inveja por se sentir um nada.
Ao longo de seu amadurecimento, essa lacuna da adolescência trouxe sentimentos conturbados: Gabriel desenvolveu uma obsessão por moças jovens. Seguia perfis de garotas desconhecidas em páginas sociais. Curtia fotos, deixava comentários elogiosos, admirava e invejava a confiança dessas garotas em sentir-se desejadas por todos, como se o mundo estivesse em suas mãos. Ao mesmo tempo, as desmerecia, como se fossem garotas imbecis e interesseiras à procura de ascensão social sem o mínimo esforço, como se somente sua juventude e beleza fossem suas moedas de troca, e essa beleza, com o tempo, murcharia como uma plantinha delicada.
Gabriel tinha uma namorada que para ele era um conforto, um “melhor do que nada”. Bianca, uma mulher de 36 anos, divorciada e mãe. Uma adulta com experiências e marcas de sua fase de vida. Apesar de ter afeto por sua namorada, de longe ela não era a princesa que povoava os sonhos românticos de Gabriel.
Em suas sessões de Terapia, Gabriel, frequentemente, falava da namorada com desdém e amargura, como se, ao se relacionar com ela, tivesse adquirido um artigo de segunda mão:
– Gosto da Bianca, mas as conversas dela me tiram do sério, é preocupação com as rotinas do filho, o cabelo que está caindo e ficando branco, a falta de dinheiro sem perspectiva de melhorar, a cobrança que eu ascenda para que possamos resolver nossas vidas… Sei que estou fazendo-a perder seu tempo. Ela quer um marido, refazer a vida dela, estabilidade financeira e de vida. Não quer trabalhar, quer um homem provedor. Vejo-a desesperada por estar perto dos 40. As vezes percebo que não gosta tanto assim de mim, acho que ocupei razoavelmente a posição que ela espera de um homem, mas que qualquer partido melhor do que eu, ganharia ela. Se conhecer qualquer cara melhorzinho, me dá um pé na bunda.
– Ao que você conta, Gabriel, as preocupações dela estão condizentes com o que ela vive. Da maneira que ela acha correta, está tentando melhorar, e conta com você para isso, você é o namorado dela. Conversar com você e mostrar o que espera da relação, é o sensato a ser feito. Os cabelos brancos e perda de juventude, fazem parte. Porque você se submete a ficar com uma pessoa que não tem admiração, e pelo que entende, também não gosta tanto assim de você?
– Porque com ela me sinto bonito, desejado, tenho sexo. Ela foi uma das poucas mulheres que me escolheu pelo que sou, sabendo que não tinha muito o que oferecer, mas depois que começamos a nos firmar na relação, as cobranças vieram.
– Ela tem pressa na relação de vocês, numa solução rápida?
– Sim! Quando me sinto imprensado, penso: “E o que ela tem a me oferecer? Quase 40 anos, um filho de outro casamento, sem o viço da juventude, reclama da vida e me cobra uma carreira que ela mesma não tem.” Eu só penso “aquele filho não é meu!” Você já ouviu falar dos Redpill? Sigo eles. Eles esclarecem muito bem essa fase da mulher, o que elas esperam, a decadência delas no mercado sexual quando chegam perto dos 30, os caras são feras”.
– Gabriel, todos temos nossas perdas, nossas derrotas. Menosprezar o que você considera fracasso em outra pessoa não diminui as suas dores. O tempo passa para todos nós, as experiências nos acompanham, cuidado com as pessoas que você segue e o que ditam como verdades. Preconceitos e discursos de ódio disfarçados de estudos e bons conselhos é o que mais tem por aí. Suas frustações alimentam esses seus companheiros ideológicos, que vem com respostas fáceis, visões misóginas e machistas, recheadas de desinformações, que enxergam a mulher como “vilãs” dentro das relações interpessoais, esquecendo que a construção de uma pessoa é fruto do que ela vive. Num relacionamento, não há perfeição, haverá questões que somente você e a pessoa que está com você poderão resolver.
Gabriel, com a amargura dá um sorriso sarcástico e diz:
– É isso que sou, um mal-amado desde sempre que virou um julgador de namoradas quarentonas com filhos de brinde.
Os dias seguiam, e Gabriel continuava a seguir moças jovens em páginas sociais. Olhar para essas mulheres servia como um lembrete de experiências que ele nunca viveu, sentia admiração por uma vida presente que lhe escapava. Para essas moças, Gabriel era um seguidor a mais, uma presença virtual, entre tantas, que não despertava nelas nenhum interesse.
E assim, nas manhãs que fazia sua barba, Gabriel continuava em suas reflexões acerca de uma juventude não vivida, de sua vida, de sua namorada, das conversas com sua psicóloga. Sua identidade parou ali, se aprisionando em um passado de diversões, flertes e aventuras que não viveu. Bianca, sua namorada, não era a real causa de seus ressentimentos, mas estar com ela era como pular uma fase inteira de vida, pois se via como o rapaz cheio de vitalidade de outrora, querendo explorar paixões leves, despreocupadas, próprias de uma juventude que não existe mais. A vida seguia, mas as feridas de sonhos não vividos de Gabriel não se curavam, ao contrário, criavam cada vez mais uma pessoa amarga e sem nenhum tipo de expectativa.
No dia de sua terapia, pensou: “Não me sinto compreendido, não volto mais!”
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Fabiana Saka (@fabianasaka), escritora e psicóloga clínica no Rio de Janeiro, é autora de “As Aventuras de Daniel – não tenha medo de si mesmo” (Ed. Ases da Literatura, 2024).