Curta nossa página


Os bonequinhos

Um conto dos idos de 2020

Publicado

Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Eram 4 da tarde quando o caminhãozinho surgiu diante de Lourenço. Era pequeno, brilhante, parecia novo em folha, saído da fábrica. Tinha cerca de 1 m de altura e estava cheio de areia. E do espaço, uns 20 cm acima dele, um jorro ininterrupto de areia se materializava, tombando sobre a parte traseira do veículo repleto e sobrando para a calçada – mas desaparecendo antes de se acumular no chão.

Lourenço era escritor, adorava brincar com palavras e imagens. Passado o susto inicial, não teve dificuldade em identificar o fenômeno.

“É a representação visual de uma de minhas expressões favoritas, É muita areia pro meu caminhãozinho”, pensou.

Ele percebeu que um número cada vez maior de pessoas tinha bonequinhos ou pequenos objetos diante de si. Notou, no outro lado da rua, um conhecido, Francisco, a quem chamava, por motivos óbvios, de Gaúcho. Ele estava com dois bonequinhos. O mais próximo colocou uma sela de cavalo nas costas, apertou a barrigueira e apontou morrendo de rir para a figurinha da frente, que sorriu amarelo, sem graça. A cena durou uns 5 segundos, os bonecos desapareceram, com sela e tudo – e logo se materializaram para nova apresentação.

Lourenço atravessou a rua (levando o caminhãozinho consigo) e perguntou ao Gaúcho o que era aquilo.

– Bah, é uma expressão da minha terra, que sempre uso, “Me arriei nele”. É o que vocês de São Paulo chamam “Tirei sarro dele”, “Tirei uma com a cara dele”. – Ficou quieto, coçou a cabeça e concluiu. – Faz tempo que não associo o arriar a arreios, e nunca pensei que eles fossem se materializar.

À noite, pela TV, Lourenço recebeu mais informações sobre o fenômeno. A coisa havia acontecido por todo o país, evidenciando a extraordinária riqueza cultural de cada região – e a inventividade dos brasileiros. Eram, em geral, lances bem-humorados, por vezes grosseiros, como o humor dos camponeses dos Países Baixos das telas de Bruegel, mas reveladores de uma grande capacidade de rir das desgraças da vida. Era comovedor ver essas pessoas simples ficarem orgulhosas quando percebiam que os bonequinhos haviam sido criados por sua mente (falar em psiquismo era demais pra eles).

E havia os sem-bonecos, que muitas vezes se limitavam a murmurar, entre dentes, “Meu Deus” ou “Minha nossa”, sem que essas frases estivessem ancoradas em seu mundo psíquico. Alguns diziam, procurando ostentar uma falsa segurança, “Meu Deus não comparece a espetáculos circenses”, fechando os olhos para as materializações de imagens de Deus e da Virgem, bem convencionais e bonitinhas, nas manifestações singelas de religiosidade da gente humilde. Outros, partindo para a ofensiva, no melhor estilo negacionista, rosnavam que “manifestação de psiquismo é coisa do demo”; mas esses raivosos eram uma insignificante minoria entre os brasileiros.

E havia os do psiquismo sombrio. A palavra de ordem deles era “Bota pra f…”, mas não raro o conteúdo sexual explícito era quase inexistente. Seus bonequinhos davam surras em mulheres e crianças; por vezes, fardados (nas manifestações psíquicas de policiais), agrediam jovens transsexuais, gays ou héteros, negros em sua esmagadora maioria. E o mais revoltante eram os que projetavam cenas de tortura, com avatares que por vezes se tocavam enquanto assistiam a esses episódios tristes e imperdoáveis.

Durante uma semana, os bonequinhos do psiquismo saudaram o povo e pediram passagem. Depois desapareceram. Só então alguns governantes – enclausurados desde o início das manifestações psíquicas, e que haviam encarregado seus subalternos de censurar a todo custo essas imagens desmoralizantes – puderam respirar. Mas o alívio das autoridades durou pouco. A censura na TV não foi efetiva, nas redes sociais menos ainda, a imagem dos torturadores se masturbando viralizou, e dessa vez não deu pra dizer que era fake News, nem jogar a culpa nos esquerdistas locais ou na tecnologia da China vermelha. Para desespero e preocupação de muitos candidatos às eleições de 2022, o psiquismo dos brasileiros se manifestou, e pode voltar às ruas a qualquer momento. É bom que assim seja.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2025 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.