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César e Napoleão (Parte I)

Um papo cabeça entre os preferidos dos deuses

Publicado

Autor/Imagem:
J. Emiliano Cruz - Foto Produção Francisco Filipino

Ano de 1817, em uma ilhota perdida no oceano Atlântico denominada Santa Helena, N. acordou de mau humor para tomar o café da manhã e, a exemplo do que já fazia há dois anos, praguejou mentalmente:

-Mais um dia nessa maldita ilha com nada para fazer além de me perguntar onde foi que errei!

Enquanto se aproximava da mesa já posta pelos criados, vislumbrou um vulto sentado à cabeceira. Era um homem de meia idade que vestia uma impecável túnica branca.

Irritado, ao mesmo tempo em que pensava “esses criados estão ficando cada vez mais folgados”, N. vociferou:

-Mas o que é isso? Quem você pensa que é para sentar-se a minha mesa sem permissão?

Parecendo não se abalar com a ira do ex-imperador da França, o homem respondeu calmamente:

-Olá, general Bonaparte! Não me reconhece? Abespinhado e confuso, N. balbuciou de forma vacilante:

-Hum…não sei, pensando bem, você não me é de todo estranho, mas como chegou aqui e o que quer na minha ilha?

-Pois é, meu caro alter ego, pensei que você me reconheceria sem eu ter que me apresentar. Se eu disser que sou romano, isso lhe diz alguma coisa?

Perplexo e lívido, N. exclamou:

-Não acredito …general Júlio César?! Será que estou sonhando? Como isso é possível???

-Bem, “como”, apenas os deuses podem saber… e, “porque”, tenho uma leve desconfiança: um capricho irresistível da parte deles!

-Não sei se já estou acordado, mas de qualquer forma, seja muito bem-vindo a minha atual humilde morada, meu ilustre colega general!

-Obrigado, general! Lamento muito não ter encontrado você em Paris nos seus momentos de suprema glória, mas como eu já disse, somente os deuses têm o poder de decidir certas coisas.

-Também lamento muito, general! Eu também gostaria que esse nosso encontro se desse em outro local e em outras condições, mas, depois de Waterloo, meu destino ficou nas mãos dos malditos ingleses. Bem, vamos tomar o café enquanto proseamos. Fique à vontade, por favor!

-Grato, estava esperando por você. Se o colega puder providenciar uma taça de vinho para acompanhar o desjejum, eu aceitaria com prazer.

-Claro! Oliver, traga o melhor vinho da adega para o nosso ilustre visitante. Meu caro César, devo lhe dizer que li tudo sobre a sua trajetória política e militar, assim como muito sobre toda a sua biografia. Você foi uma inspiração para mim!

– Ah, sei disso, Bonaparte! Não o chamei de alter ego à toa! E devo lhe dizer que, pela graça dos deuses, também sei tudo sobre você e sua trajetória política e pessoal.

-Ótimo, César! Então podemos dizer que nossa conversa terá uma saudável e fraterna paridade de armas, se me permite a metáfora.

-Sim, gostei da metáfora! Bem, Bonaparte, já que leu tudo sobre a minha vida, diga-me, para iniciarmos a prosa: você concordaria com todas as minhas decisões político-militares?

-Bem, César, certamente nós dois somos os maiores depois de Alexandre, o grande e, como já lhe disse, o amigo me inspirou muito! Porém, tem uma, ou melhor, duas coisas que eu faria diferente de você.

-Diga lá, Bonaparte! Confesso que estou curioso para saber do que se trata!

-Certo! Primeira questão: durante a sua brilhante campanha de conquista da Gália que, por sinal, hoje é a minha França, você fracassou na batalha de Gergóvia por confiar exageradamente nos seus aliados éduos. Eles mudaram de lado na hora H e você amargou a sua única derrota em um campo de batalha.

-Verdade, confiei demais naqueles desgraçados! Os bárbaros traíras me deixaram mesmo com as calças na mão contra os gauleses de Vercingetórix. Mas depois eu acabei com todos eles em Alésia, como você já sabe!

-Então…e outra coisa meio incompreensível para mim: você tinha uma política de perdão irrestrito para os seus adversários romanos que eram derrotados e que prometiam passar para o seu lado.

-Quase isso, general!

-Mas César, estava na cara que nem todos mereciam essa chance… e isso lhe causou muitos transtornos durante a guerra civil contra o general Pompeu e os nobres aliados a ele. Concorda?

-Pode ser, meu caro! Mas foi um risco calculado e isso me diferenciou de todos os outros generais da História de Roma. Tal política de cooptação firmou nos anais a marca “Júlio César” e, assim, fiquei imortalizado como “o ditador democrático”, um iluminista acima de vendetas e de ódios passionais, tudo pela glória maior de Roma.

-Hum… entendo, César! Mas, no fim, essa postura magnânima te levou a ser apunhalado pelos teus amigos traíras liderados por Brutus e Cássio, em pleno Senado de Roma. Achas que valeu à pena?

-Pois é, Bonaparte, teve até um talentoso compositor para além da sua época que tirou onda da minha cara com um verso muito maroto. Olha só isso: Hei, Júlio Cesar. Vê se não vai ao senado Já sabem do teu plano Para controlar o Estado.

– E quem foi o atrevido, César?

-Não importa! Não foi nada disso, o povo é que queria me coroar, mas eu nunca aceitei ser rei! E quanto a Brutus, foi um caso à parte, uma fraqueza de paternidade afetiva. Eu amava a mãe dele!

-Meu caro César, coração à parte, eu senti vontade de te dar um murro na cara por não teres percebido aquela conspiração mequetrefe! A verdade é que até as muralhas de Roma sabiam que havia um grupo de nobres invejosos que tramavam contra a tua vida e que, Brutus e a mãe dele, estavam envolvidos nisso até o pescoço. O amigo não tinha um sistema de inteligência ou de informação para zelar pela tua segurança?

-Eu sabia dos rumores, é claro! Marco Antônio até me alertou e queria passar Brutus na espada sem mais delongas, mas eu queria provas antes de exercer qualquer tipo de repressão.

-Não ouviste o fiel Marco Antônio e deu no que deu…

-Então, eu quis ser coerente com o meu perfil legalista republicano. Não avaliei que correria perigo em uma sessão regulamentar do Senado. Sim, joguei dados com o destino e perdi…acontece! Mas, meu caro Bonaparte, se os deuses tiraram de mim a proteção nessa hora, talvez tenha sido para futuramente eu não ter um destino parecido com o teu.

-Um destino como o meu? Como assim, caro César?

-Você submeteu à impotência qualquer oposição política ao teu governo depois que, via plebiscito, te tornastes imperador da França, não é mesmo? Encarceravas sem processo todos os potenciais exaltados que pudessem ameaçar a tua vida. No entanto, por outro lado, cometeste erros políticos e militares absurdos…e foi isso que hoje te tornou prisioneiro dos ingleses nessa ilha perdida.

-Você está falando da batalha de Waterloo? Eu poderia ter vencido, caso os meus generais adjuntos não tivessem metido os pés pelas mãos durante a batalha!

-Não, Bonaparte! Em Waterloo, você e o seu exército de jovens recrutas inexperientes já entraram derrotados em campo. Estou falando de outras situações anteriores e mais complexas.

-E quais seriam elas, César?

………………….

A Parte II deste folhetim será publicada na quinta, dia 5

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