Alô, quem fala?
Um retrato nostálgico da passagem do tempo e da permanência da saudade
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Eu não testemunhei a época, mas cheguei a ver, em alguns lugares de minha infância, placas de estabelecimentos comerciais, ou suas fachadas, onde se conservavam os números de telefone muito antigos, com surpreendentes dois algarismos apenas. Lembro-me do Hotel Paraíba, em Paraíba do Sul, no passado longínquo propriedade de meu tio-bisavô Américo Marchi e sua esposa, Isolina, onde o telefone era “33”. Ou a fachada da antiga Cerâmica D’Angelo, na mesma cidade, que ostentava o “phone 27” no ocre de suas paredes sob a sombra de enormes chaminés.
Algo durante a semana, não lembro exatamente o quê, me lembrou daquele ruído que escutávamos quando se tirava o telefone do gancho, esperava “dar linha” e discava um número, ainda naqueles aparelhos de disco. Hoje a juventude não sabe mais o que é isto – eles não discam, digitam.
Discar era no meu tempo. Pois discava-se, geralmente sete ou seis algarismos, a depender de estarmos em cidades grandes ou no interior e, de repente, após uma fração de segundos de silêncio, o telefone “chamava” lá no fim da linha, e escutávamos a chamada. Um toque, dois toques, três… Até que atendiam.
– Alô?
– Alô, quem fala?
Era a senha e a contrassenha para se começar a conversa, fosse ela com pessoa amiga ou desconhecida.
Quando a timidez, ou a reserva, impediam declarar a identidade ao interlocutor, completava-se o diálogo inicial assim:
– Com quem deseja falar?
Quando passei pelo segundo grau na escola e tive algumas graves dificuldades em matemática, arrumaram-me um professor particular no Méier, que atendia de maneira diferenciada, franca e segura. Ele já começava o diálogo declarando o seu número inteiro:
– Pronto, boa tarde, dois-meia-nove-sete-sete-zero-nove…
Jamais havia visto quem dava assim, de chofre, o número inteiro do telefone ao atender. Ao menos em minha casa, não era o hábito. Pois isso me impactou, e até hoje atendo ao telefone, frequentemente, dizendo “pronto”.
Quando ligava-se para alguém que já estava em conversa telefônica, dizia-se “está ocupado”. Ou, mais raramente. “está em comunicação”. Era o caso de aguardar e chamar novamente dali a alguns minutos. Com sorte, tudo funcionaria bem na conexão provida por empresa estatal, e a conversa se daria sem maiores incidentes.
Havia, no entanto, dias difíceis na telefonia… O telefone “não dava linha”, ou “ficava mudo”, a ligação “caía”, ou se passava o mais curioso dos fenômenos – a linha cruzada, quando uma conversa sofria a interferência de outra ligação e, involuntariamente, ouvíamos o diálogo entre duas ou mais pessoas estranhas, eventualmente até conseguindo participar dele.
Depois, o telefone de pulso, onde a discagem se dava por pulsos elétricos provocados pela rotação do disco, foi sendo substituída pela discagem por tom, que usava curtos sinais de áudio em diferentes frequências para representar os números. Isso impossibilitou para sempre a burla a telefones cujos discos eram trancados a chave para impedir ligações não autorizadas. Quem possuísse a habilidade, podia simplesmente tirar o fone do gancho e bater neste, em sequência, o número de vezes necessárias para formar os algarismos do número que se quisesse chamar, com uma pausa diminuta entre os grupos de batidas. Era a forma de usar telefone de disco, sem tocar nele. Eu consegui fazê-lo algumas vezes.
Outra memória: a depender do número, ou do local em que se estivesse no Rio de Janeiro, o som do sinal de discagem ou da chamada podia variar ligeiramente. Fiquei sabendo, mais tarde, que isso se devia à existência de centrais diferentes pela cidade, instaladas em épocas distintas e mesmo por companhias diversas que, no entanto, comunicavam-se entre si porque para isso haviam sido adaptadas.
Possuir telefone fixo em casa não era para todos. Uma linha custava caro, quase o preço de um automóvel novo. Em nossos dias, telefone fixo em casa é raridade cada vez maior.
Ainda conservo uma pequena agenda com números de telefone anotados. Colegas da escola, amigos perdidos de vista, uma moça de quem gostei, parentes mais velhos, muitos dos quais eram atendidos por pessoas que já não habitam este mundo de dores e angústias. Um objeto praticamente inútil, que só o apego me faz guardar.
Mas, por vezes, tenho vontade de pegar dentro de um armário o aparelho fixo que conservo em minha casa, de antigo baquelite preto, conectar a alguma tomada e, se der sinal – por que não? – discar aqueles números, da esperança que alguma voz do passado, já há muito calada, ressurja hoje, sendo ouvida com clareza, limpidez, e, reconhecendo meu chamado, responda-o prontamente:
– Alô, pois não?
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Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).