A condutora (Parte II)
Uma descoberta chocante
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Flávio a encontrou no local combinado e agora totalmente à vontade, sentou-se novamente no banco ao lado dela, e desfrutou, mais uma vez, da recepção com aquele mesmo sorriso e gentileza da primeira vez. Logo em seguida já engrenaram um diálogo intenso, repetindo e aprofundando alguns temas sobre os quais conversaram na primeira vez e abordaram alguns inéditos.
Entre um fala e outra, algo totalmente insólito aconteceu, ela acabou revelando ser, na verdade, viúva. Sim, seu marido, a quem se referia várias vezes durante a conversa, havia falecido em um acidente de moto há aproximadamente dez anos.
Completamente perplexo e mais confuso do que antes, não podia acreditar. Mas era verdade. Ela não poderia estar brincando com coisa tão séria. Um misto de sentimentos contraditórios e perturbadores invadiu sua alma. Estava ao mesmo tempo chocado e feliz, embora a história fosse bem triste.
– Como assim? Você fala sobre ele como se convivessem normalmente!? Como se conversassem sobre as coisas do dia a dia!?
– Puxa! Me desculpe! Devia ter lhe contado antes. Mas é que para mim é tão normal me referir a ele dessa forma. Está sempre a meu lado e aparece diversas vezes em sonho conversando comigo e me aconselhando. Sabe, sou uma pessoa muito espiritualizada. Acredito não só na vida após a morte, como na comunicação entre vivos e mortos. Sou seguidora da religião do “Vale do Amanhecer”, localizado em Planaltina, na região de Brasília.
Flávio não conseguiu recobrar seu equilíbrio emocional durante o percurso. Mas isso não a impediu de continuar a conversa, falando sobre a religião. Mostrou-lhe uma foto vestindo uma roupa longa toda em azul claro, com um capuz e uma faixa branca na cintura, usada nos rituais, afirmando ter sido, em uma vida passada, há aproximadamente 3.500 anos, uma representante da sociedade Jaguar.
Ficou sabendo sobre a vida de tia Neiva, uma médium brasileira e a primeira caminhoneira do país. Nascida no ano de 1925 no município de Propriá, no estado de Sergipe. Trabalhou na construção de Brasília, passando a viver lá até sua morte, em 1985. Tia Neiva fundou a doutrina mística do Vale do Amanhecer em 1969, com a ajuda de seu mentor espiritual, Pai Seta Branca, uma entidade de luz, reencarnado diversas vezes, uma delas como discípulo de Jesus. Foi também São Francisco de Assis e liderou mais remotamente as civilizações dos equitumans, tumuchys e jaguares.
Após a morte da fundadora, a liderança da seita foi transferida para dois de seus filhos, mas não conseguem levar a incumbência com a mesma dedicação da mãe, pois há entre eles uma grande disputa de egos. De qualquer modo, os seguidores permanecem fiéis à doutrina e não esmorecem.
Foi outra noite, à semelhança de quando conheceu Ana, sem conseguir dormir bem, pensando em toda aquela história fabulosa, misturada com o sentimento não bem discernido a nutrir por aquela mulher incrível e, agora, meio misteriosa. Mas de uma coisa não tinha nem sombra de dúvida, queria cada vez mais usufruir de sua agradável companhia o quanto pudesse, a ponto de a convidar par jantar naquela mesma noite. E, para sua euforia, ela aceitou sem hesitar.
A noite foi maravilhosa e, embora não seja apreciador da comida japonesa, não questionou a sugestão de irem a um dos tradicionais restaurantes locais especialistas naquela culinária. Pelo menos havia uma vantagem, a play-list do local não incluía música japonesa, apenas Rock ‘n’ Roll, seu estilo preferido, e logo ao entrarem o sistema de som tocava Ruby Tuesday dos Rolling Stones, que ele ofereceu a Ana, dizendo:
– Essa será nossa trilha sonora. Você gosta?
Felizmente, como já havia aprendido com experiências anteriores, pediu um prato que não inclui peixe cru e nem vegetais estranhos, um Teppanyaki de filé com alho e Gengibre, um grelhado preparado em um teppan, uma chapa de ferro quente. Ela escolheu uma daquelas bandejas em formato de barco, com tudo quanto é tipo de iguarias: sushi, sashimi, tempurá de camarão, guioza etc. e comeu tudo sozinha.
Mais uma revelação: a moça, apesar do corpo escultural, é muito boa de garfo, ou melhor, muito boa de hashi.
Na mesma noite, descobriu também, um pouco decepcionado, mas nada muito relevante, que Ana não tomava bebida alcoólica, assim pediu ao garçom para trazer um suco detox para ela, e para si uma meia garrafa de vinho, pois mais do que isso poderia comprometer sua capacidade de desfrutar integralmente daquele momento fascinante, e assim como tem dificuldade em comer a comida, também não aprecia o saquê. A conversa fluiu e a companhia inebriante já o havia feito superar o choque do dia anterior sobre ambas as descobertas: a viuvez e a religião de sua nova paixão.
Aprendeu mais coisas sobre o Vale do Amanhecer, sendo indagado se gostaria de, em um desses dias, acompanhá-la para conhecer as instalações e participar da celebração para iniciantes na sede da religião, sendo, para isso, necessário viajarem juntos a Brasília. Respondeu com firmeza que sim, embora, intimamente, tivesse muitas dúvidas se teria coragem, não de conhecer o Vale, pois muito se interessa por religiões, mas de ir sozinho com ela. Teria de mentir para a esposa de que estaria viajando a trabalho, mais uma vez…
Ana lhe mostrou fotos de várias etapas da vida da filha, Ana Paula, e Flávio descobriu ser ela uma lindíssima mestiça, levando-o a concluir que Paulo, o falecido marido, era negro. Mostrou também, fotos do finado, uma a seu lado, em estágio avançado da gravidez. Por fim contou que havia nascido no ano instituído pela ONU como “Ano Internacional da Criança”, 1979, portanto havia completado no último dia 31 de julho, 39 anos – parecia bem menos – era uma leonina bem característica, ele já desconfiava.
Ele também contou muitas coisas sobre sua vida e suas crenças, afirmando que, apesar de sua criação na religião Católica, considera-se hoje em dia um agnóstico não ateu. Ou seja, não professa nenhuma fé específica, reconhece não ser conhecedor dos mistérios para além do mundo terreno, mas intui haver um espírito superior, “senhor de tudo”, dentro e fora do universo.
Falou sobre sua esposa atual e suas duas ex-esposas, com quem mantém uma bela amizade, cada uma das três mãe de um de seus filhos, por isso a grande diferença entre as idades deles, dos quais também mostrou fotos, e dos três netos, por fim, revelou sua idade, 55 anos, comemorado no dia 11 de março, um típico pisciano.
As horas se passaram rapidamente e eles falaram sobre tudo, de filosofia a futebol, passando por música e política, literatura e viagens, sobre o amor e poesia. Foi quando ela notou o adiantado da hora e pediu que fechassem a conta para irem embora, pois ainda teria de passar em casa para ver se estava tudo bem com Ana Paula e dormir algumas poucas horas, pois teria de se levantar às 4h da manhã e ir para o aeroporto, e deixar para ir mais tarde a fila já estará muito grande forçandoa a ficar muitas horas esperando o primeiro passageiro.
Deixou-o no hotel, despediram-se agradecendo mutuamente a agradável companhia, mas dessa vez com um beijo no rosto. Para dizer a verdade, Flávio teve a tentação de a beijar nos lábios, mas não ousou, ficou apenas divagando, talvez numa próxima oportunidade, não só arriscar roubar um beijo, como convidá-la para subir até sua suíte para continuarem a conversa.
Cada vez mais se tornavam íntimos. Sabiam muitas coisas sobre a vida um do outro. Todas as vezes que Flávio tinha de ir para lá, ela já o esperava no aeroporto no lugar de costume. Sabia seus horários e seus trajetos e se encontravam muitas vezes para jantar ou mesmo tomar um café, bebida que também apreciava muito e aprendeu com ele a tomar puro, sem açúcar ou adoçante.
Trocavam até confidências. Ela contou que tinha um grande ressentimento com os pais. Quando tinha apenas 12 anos, a mãe abandonou o marido e os filhos e desapareceu, reaparecendo somente sete anos mais tarde. Eram em cinco, Ana a mais velha, abaixo duas gêmeas com oito, um menino de seis e a caçula com apenas dois anos. Na condição de primogênita, foi obrigada pelo pai a assumir as responsabilidades, não só da casa, como de cuidar dos irmãos, tendo de lavar e cozinhar para todos e se deixasse de cumprir algumas das tarefas, era castigada.
Certo dia, ela não teve tempo de deixar o jantar pronto, e, ao chegar, o pai deu-lhe uma surra. Naquela noite fugiu de casa, mas não tinha para onde ir. Acabou por se juntar a um grupo de moradores de rua, tendo vivido com eles por mais de um ano.
O pai certamente não a procurou, pois não seria tão difícil localizá-la. Poderia, mesmo, ter acionado a polícia, se tivesse interesse. Ficou sabendo que ele por essa mesma época, arranjou uma companheira que se encarregou das tarefas do lar.
Foi por esse tempo que iniciou sua espiritualização. Numa das noites, enquanto dormia, foi violentada por um rapaz que também vivia no grupo. Ana ficou completamente traumatizada, e não era para menos, além da violência animalesca, sua pouca idade e a inocência. Pensou em procurar outro lugar para viver, mas não tinha para onde ir. Nutriu um profundo sentimento de ódio por seu agressor, e jurou se vingar.
Numa noite, enquanto todos dormiam ela conseguiu pegar uma faca muito grande, pertencente a um dos membros do grupo e se aproximou do rapaz que dormia, chegou bem perto e levantou a faca para cravá-la em suas costas. Nesse momento, como se uma entidade de outro plano falasse calmamente com ela, ouviu uma voz:
– Não faça isso, você se arrependerá. Se o matar não obterá a paz que procura. Acalme seu espírito.
A partir daquele momento, começou a refletir sobre toda sua difícil vida e pensou em buscar aproximação com Deus por meio de uma religião.
Na manhã seguinte, teve um estalo, lembrou-se de uma tia, irmã de seu pai, moradora na periferia da cidade, mas só se recordava aproximadamente da região. Com um pouco de esforço, conseguiu se lembrar de onde poderia tomar o ônibus para lá. Se esperasse no ponto e observasse todos os coletivos, ao ver o letreiro de cada um, reconheceria o nome do bairro.
Sabia que a casa era próxima ao ponto final e, descendo lá, acertaria o caminho. Faltava o dinheiro da condução, mas isso não era problema. Por sobrevivência se acostumara a pedir trocados nos semáforos. Essa foi sua salvação.
Na casa da tia encontrou mais do que proteção, mas carinho e dedicação. É muito agradecida a ela, pois no momento mais crítico da vida a acolheu. Inclusive, foi quem lhe apresentou o Vale do Amanhecer, anos atrás, quando viajaram de ônibus até Brasília, pois não tinham condição financeira para passagem aérea.
Com a evolução da intimidade entre ambos, o inevitável acabou por acontecer, um relacionamento amoroso. Flávio, apesar de ter um grande carinho pela esposa e quando voltava para casa sentia um profundo remorso por a estar “traindo”, estava completamente apaixonado, e ao lado de Ana esquecia da vida em sua cidade e apenas tinha pensamentos para ela.
Ana, por sua vez, embora adorasse sua companhia e todas as vezes em que ele viajava para lá, passava pelo menos uma noite junto dele no hotel, enfrentava também um grande dilema; frequentemente se referia ao fato de não se sentir bem, pois era casado e, de acordo com sua religião, isso não era correto. Pensava na companheira de Flávio e se colocava no lugar dela.
A relação deles durou alguns meses. Quando não estavam juntos se falavam diariamente por mensagens de celular. Flávio, acordado, pensava nela todos os minutos de seus dias e, dormindo, sonhava com ela muitas noites. Fazia quase um ano desde que entrou naquele taxi no aeroporto pela primeira vez e viu sua vida se transformar em um turbilhão, mas não se arrependia. Tivesse a oportunidade de viver aquela situação novamente, faria tudo da mesma forma, ainda que estivesse colocando seu casamento em risco.
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O epílogo (parte III) deste folhetim será publicado na quarta-feira, dia 17.