Incidente ou homicídio?
Uma história bem kafkiana no metrô de São Paulo
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De tempos em tempos, a lembrança de Franz Kafka e da sua peculiar visão sobre os absurdos da vida me vem à mente. “A metamorfose” e “O processo”, cada um com seus respectivos roteiros e brilhantes especificidades, são ícones literários que trazem à baila a angústia de, inopinadamente, cairmos em um labirinto de situações completamente surreais. E, nesse cômodo central do realismo fantástico de Gabriel García Márquez, qualquer explicação racional para o que estamos vivenciando nunca passa de uma miragem.
Eu vivi meu dia de personagem kafkiano quando, certa vez, estava no interior de uma estação do metrô de São Paulo. Costumo usar esse magnífico transporte público quando sinto vontade de revisitar o centro histórico da cidade, passeio que sempre contagia a minha alma de leveza existencial, História e poesia.
Esperava o trem na plataforma de embarque, absorto em meus pensamentos sobre qual percurso faria após desembarcar na estação Sé, quando, juntamente com outros usuários da linha azul, fui surpreendido por uma cena insólita: um rapaz corpulento, parecendo meio grogue, cambaleou e desabou nos trilhos.
Imediatamente, saltei atrás dele, ao mesmo tempo em que gritei a quem estava em volta que avisasse a central de controle para parar a circulação dos trens da linha. Como já tinha observado, o sujeito era muito grande e pesado. Somente com grande esforço consegui erguê-lo pelos ombros e fazê-lo sentar sobre os trilhos. Ele tinha um corte na testa, certamente, consequência da queda.
Ouvi uma senhora implorar para eu sair do vão dos trilhos. Disse a ela para não se preocupar porque eu era alguém preparado (?) para aquelas situações e estava de olho em uma possível aproximação do trem que a qualquer momento poderia chegar à estação.
Tentei colocar o sujeito em pé, mas agora ele estava desacordado. Então ergui os braços dele e pedi para quem estava na beirada ajudar a puxá-lo para a plataforma.
Quatro homens, segurando os braços do rapaz, conseguiram aos poucos erguê-lo para fora do vão.
Aliviado por não estar vendo nenhuma luz no túnel vindo em minha direção, estendi os braços e, com a ajuda de duas mãos muito fortes, voltei em segurança à plataforma.
Foi então que um sujeito vestindo terno e gravata, com o dedo apontado em direção a outro homem que estava próximo, gritou que esse teria empurrado o rapaz corpulento da plataforma. De imediato, os seguranças do metrô, que já estavam no local, detiveram o acusado.
Eles se dirigiram a mim e perguntaram se eu também tinha visto a cena relatada pelo engravatado. Respondi que havia apenas observado o rapaz caindo da plataforma e não o suposto safanão. Não obstante, o engravatado reiterou ter notado o empurrão e que ele fazia questão de testemunhar porque era o seu papel de cidadão e, além do mais, estava prestando concurso para o Ministério Público, o que aumentava o seu dever de zelar pela realização de justiça.
O acusado nada falou, limitando-se a balançar negativamente a cabeça, sendo que ninguém mais quis testemunhar sobre o ocorrido. A seguir, acompanhados do acusador engravatado, os seguranças conduziram o suspeito para a central de controle do metrô, dizendo ao mesmo que ele teria que ficar lá até o esclarecimento da situação.
Quanto ao vitimado, estava sentado na plataforma parecendo retomar a consciência, agora sob os cuidados de dois socorristas do metrô. Como a minha presença não foi mais requisitada, e a circulação dos trens já havia sido normalizada, segui o meu caminho e entrei no primeiro trem que chegou à estação.
A caminho da estação Sé, fiquei matutando sobre qual seria a alternativa mais verossímil para explicar aquela estranha história ainda inconclusa.
O autodeclarado candidato ao MP estaria falando a verdade? Então, por que eu e os outros usuários do metrô não vimos o tal empurrão?
E se a tentativa de homicídio de fato ocorreu, qual seria a motivação?
Dívida de jogo, compra de drogas não paga, queima de arquivo, crime passional, crime de ódio, ação de um serial killer…?
Teria o suposto concursante inventado a história do empurrão por algum motivo inerente a sua psique fantasiosa? Mas, então, por que o acusado não reagiu com indignação frente à falsa e gravíssima acusação?
E se eu não tivesse intervindo? O trem teria conseguido parar a tempo de não fazer suco de tomate do vitimado corpulento? E, pior, caso a paralisação da linha não tivesse ocorrido, estaria eu aqui contando essa história após saltar da plataforma para socorrer o rapaz?
Muitas perguntas sem respostas…ou, então, com muitas respostas possíveis, todas pegando um trem chamado paradoxo rumo a uma estação desconhecida.