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O militante

Uma provocaçãozinha com uma pitada de utopia

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Uma provocaçãozinha com uma pitada de utopia, escrita em 2020. Francisco definia-se como um militante. Um militante onívoro, que traçava o que aparecia, ou seja, dedicado às mais diversas causas. E que encontrara nas mídias sociais o instrumento ideal para exercer sua vocação.

Ele jamais esquecera uma cena de um filme de Jerry Lewis: uma velhinha, diante da televisão, está rodeada por pacotes de batatas fritas, chocolates, sopa instantânea, e por aí vai. Quando vinham os comerciais, ela consumia o produto anunciado, na ordem em que aparecia na telinha – por exemplo, primeiro o chocolate, depois as batatas fritas, a sopa, o que fosse. “Devo lealdade ao anunciante”, repetia. Francisco, por sua vez, acreditava dever lealdade aos impulsionadores das mais diferentes causas, o que a seus olhos fazia dele, no conforto de sua casa, um combatente abnegado.

No âmbito da política brasileira, Francisco já colocara seu jamegão em muitas dezenas de abaixo-assinados, muitos dos quais exigiam a demissão de funcionários incompetentes ou racistas. Também defendeu a autonomia universitária, sem ter a menor ideia do que isso significava. Chegou a assinar uma petição de impeachment do presidente. Tinha algumas reservas quanto à eficácia da iniciativa – “Não pode ser tão fácil, não foi com Collor nem com Dilma” – mas, ainda assim, assinou. “Vai que o homem cai, graças a mim e a outros brasileiros imbuídos de amor pelo país”, pensou esperançoso.

Sua militância onívora ia muito além da esfera política. Por exemplo, certa vez Francisco assinou uma petição em defesa das focas ameaçadas por predadores como as orcas, e outro que protestava contra a expressão “baleias assassinas” atribuída a esses sempre famintos bicharocos. Fez isso depois de analisar em detalhe (via internet) o modo de vida de orcas e focas, e de concluir que ambos, predadores e presas, tinham direito a viver como quisessem ou pudessem, sem receber ofensas por isso. Na verdade, antes de assinar um manifesto ou coisa semelhante, Francisco dedicava muitos dias ao exame da questão, pois orgulhava-se de sua imparcialidade e senso de justiça. (Isso lhe oferecia a vantagem adicional de preencher suas horas vagas, pois estava aposentado.) Se lhe encaminhassem um abaixo-assinado propondo, por exemplo, o encaminhamento de cadáveres humanos aos dragões-de-komodo, grandes apreciadores de carniça, ele ponderaria a questão com cuidado, pesando os prós e os contras – e provavelmente terminaria por firmá-lo, afinal todos os bichos merecem amparo.

Com o tempo, Francisco especializou-se em algumas causas, tais como o apoio a movimentos de libertação nacional. Era revigorante participar dos esforços em prol da criação de um país – e quanto mais obscuro o grupo político, ou mais desolado o território a ser libertado, melhor. Mais ainda, decidir pela justeza de uma causa dessas dava-lhe a oportunidade de conhecer – por e-mail ou rede social, nada de contatos pessoais – a quase totalidade dos militantes dos grupelhos libertadores.

Nos últimos meses, apaixonara-se pelo MLF – o Movimento pela Libertação dos Fueguinos, na Terra do Fogo, dividida entre a Argentina e o Chile. A perspectiva de derrotar politicamente dois Estados o emocionava; e a pouca expressão do movimento lhe dera oportunidade de se corresponder com todos os quatro dirigentes (o MLF tinha menos de 20 militantes).

Por um momento, Francisco descartou as orcas e focas e dedicou a totalidade de suas energias à arbitragem das intrincadas controvérsias entre fueguinos argentinos e chilenos Por esse motivo, não deu a menor atenção às gigantescas mobilizações brasileiras de junho de 2021, que colocaram o governo em xeque e obrigaram o presidente a renunciar, quatro meses depois. Mas, claro, ficou satisfeito com o desfecho. “Conseguimos, eu e os demais patriotas que assinamos o documento do impeachment”, pensou orgulhoso.

Quando ele postou essa conclusão em suas redes sociais, recebeu uma saraivada de injúrias daqueles que haviam lutado nas ruas contra a repressão. Decepcionado, decidiu esquecer a política brasileira e impulsionar outras causas. “Afinal, os fueguinos precisam de mim. E também as focas, orcas e – por que não? – os dragões-de-komodo”, pensou sentado no sofá, enquanto tomava fôlego para novos esforços militantes.

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