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Trama diabólica

V DE VINHO E DE…VINGANÇA

Publicado

Autor/Imagem:
J. Emiliano Cruz - Foto Francisco Filipino

Tensa, Larissa questionou novamente Moacir:
— Você tem certeza que ele vem?

— Absoluta! Ele é pavão demais para recusar essa honraria.

— Concordo! Floriano sempre considerou a si próprio o maior enólogo do planeta.

— Sim, para além das outras vaidades que ostenta, essa será a sua perdição.

— Estou ansiosa para iniciar a parte final do nosso plano.

— Calma, temos que tratá-lo bem até o desfecho do que planejamos.

— Eu sei, estou preparada, apesar do ódio que queima o meu coração!

— O meu também queima, mas vale a pena esperar!

O ronco de um automóvel entrando no estacionamento da residência à beira-mar interrompeu o diálogo do casal.

— Finalmente, ele chegou!

O barulho da campainha confirmou as palavras de Moacir.

— Eu abro a porta, disse Larissa.

— Boa noite, Floriano!

— Olá, Larissa! Puxa, você está ainda mais bonita do que na época da faculdade!

— Obrigada, você também está muito bem!

— Olá, Moacir! Sempre cultivando esse bigodinho a la Clark Gable, hein?

— Como vai, Floriano? E você, sempre um galã incorrigível, não é mesmo?

— Ora, nasci assim e assim morrerei, meu caro!

—Bem, vamos comemorar esse reencontro com um brinde. Separei um pinot noir Alma Negra para a ocasião, propôs Larissa.

— Hum… você não é uma especialista em vinhos como eu, mas sabe o que é bom, minha cara!

— Você ficaria surpreso com as novas habilidades que Larissa adquiriu nos últimos anos, observou Moacir.

— É mesmo? Bem, você deve saber do que está falando, afinal, vocês estão casados. Ela preferiu você a mim, replicou Floriano.

Larissa lançou um olhar carregado de ódio para Floriano, mas conteve-se.

— Sim, nós nos casamos logo após a formatura. E você, continua solteiro?

— Pois é, ainda não encontrei a minha alma gêmea, mas não reclamo da sofrida e colorida vida de solteiro, minha cara

— Imagino que não, disse Moacir. Você namorava uma colega da faculdade a cada mês. Nunca quis compromisso sério.

— Ora, nós três somos médicos, mas não precisamos ter a mesma vocação quando se trata de viver o amor, meu caro, falou Floriano, levando em seguida uma mão à boca após o comentário.

— Hum, você está tossindo! Talvez seja melhor não fazermos a conferência do Amontillado hoje. O barril está armazenado no porão da casa e aquele lugar mais parece uma catacumba. Lá é muito úmido e pode agravar o seu problema, falou Moacir, aparentando preocupação.

— E sempre podemos chamar o Luchesi para fazer a conferência, ele é um enólogo tão habilitado quanto você, acrescentou Larissa.

— Ora, isso não é nada! E quanto a Luchesi, ele sempre foi um farsante, não saberia distinguir um Xerez simples de um Amontillado, protestou Floriano.

— Se você diz…aquiesceu Moacir.

— Nós agradecemos muito a sua gentileza em nos ajudar nessa questão, vamos pagar uma fortuna pelo barril, mas temos que ter certeza de que o Amontillado é legítimo, disse Larissa.

— Imagine, quando o Moacir me ligou, fiquei feliz com a oportunidade de rever os colegas e amigos e, claro, também provar um bom Amontillado.

— Então brindemos, à vida, ao amor e a todas as suas possibilidades, falou Larissa erguendo a sua taça.

— À vida e ao amor, replicaram Moacir e Floriano.

— E então, agora que já degustamos essa maravilha de Alma Negra, vamos ver o Amontillado? Ele tem que ser provado in loco no barril, senão perde a sua essência.

— Claro, vamos lá, falou Moacir, sorrindo furtivamente, ao mesmo tempo em que trocava um olhar vitorioso com Larissa.

Após descerem a estreita escada do porão, os três ex-colegas começaram a percorrer os túneis que conduziam ao depósito do precioso vinho.

Moacir, carregando uma lanterna, advertiu:

— Caminhem com cuidado, esse solo é muito irregular, fácil tropeçar e cair por aqui.

— Estou sentindo muito frio, queixou-se Floriano.

— Devíamos ter lhe oferecido um casaco, disse Larissa.

— Está se sentindo mal? perguntou Moacir.

— Não sei, além do frio, estou me sentindo sonolento, respondeu Floriano.

— Deve ser o efeito do salitre e da umidade, disse Moacir.

Após o trio ter percorrido corredores cada vez mais estreitos e sinuosos, Larissa anunciou:

— Chegamos! É aquela cripta ali.

— Agora preciso achar a chave certa para abrir a grade, tem muitas salas por aqui e nunca sei qual chave abre qual grade, explicou Moacir.

Enquanto Moacir calmamente testava as chaves, Floriano desabou no chão, desmaiado.

— Bem no tempo certo, comentou Larissa, sorrindo.

— Você acertou com perfeição a dosagem do sonífero, elogiou Moacir.

— Agora abra a grade e vamos carregá-lo até as correntes, daqui a pouco ele irá acordar.

Ao abrir os olhos e sentir o incômodo das algemas que lhe prendiam as mãos nas correntes, Floriano lançou um olhar interrogativo para o casal. Perplexo e indignado, vociferou:

— O que é isso? Por que estou preso nessas correntes? Que brincadeira é essa?

— Calma, vamos conversar um pouco sobre a nossa época de faculdade, respondeu, impávido, Moacir.

— Você se lembra da Virginia, nossa ex-colega e querida amiga minha e do Moacir? questionou Larissa.

Floriano sentiu um calafrio perpassar todo o seu corpo, aumentando ainda mais o seu desconforto com a estranha situação.

— Virginia Lima? Claro que lembro…mas o que tem ela?

— Você e os seus três amiguinhos de farra sabem muito bem o que ela tem… desde aquela festinha em que vocês brutalmente abusaram dela, respondeu rispidamente, Moacir.

— Ela ficou em coma por dez dias após ter sido estuprada por você e sua turma de bastardos morais a um ano da formatura. Depois, destruída, traumatizada e psicologicamente abalada, ela teve que abandonar o curso, complementou, com ódio na voz, Larissa.

— Gente, mas aquilo aconteceu há três anos e já foi esclarecido, eu nem lembrava mais disso. O que houve foi um infeliz incidente em que todos passaram do ponto depois de muito vinho. E ficou comprovado que ninguém teve culpa, simplesmente aconteceu. Agora deixem de brincadeira e me tirem daqui!

— Sim, tudo ficou esclarecido… o diretor da faculdade colocou panos quentes, relatou que todos haviam bebido demais e convenceu a polícia a não instalar inquérito, ou seja, a culpa foi da vítima imprudente que teve a vida destruída por seus próprios atos, ironizou Larissa.

— Realmente, Vitória não tinha como esquecer esse dito incidente, mas para você foi fácil esquecer, não é mesmo, Floriano? Larissa e eu cuidamos dela esse tempo todo, mas ela nunca conseguiu superar o trauma e voltar a ser ela mesma, disse Moacir.

— Ora, o que vocês querem que eu diga? Certo, lamento! E então, como ela está agora?

— Ela morreu há três dias, Floriano!

— Tirou a própria vida com uma tesoura!

Um silêncio ensurdecedor se instalou no ambiente cercado de escuridão e umidade por todos os lados.

Com voz mais ríspida do que nunca, Larissa rompeu o impasse:

— Ela era a melhor aluna da turma, brilhante, dedicada e amorosa. Teria sido uma médica magnífica!

Já imaginando o pior, Floriano jogou a sua última carta:

— Olha, de novo, lamento muito por ela! Mas o que vocês vão fazer? Vão me matar por isso? A polícia iria investigar meu desaparecimento e logo descobririam o que houve… vocês pegariam cadeia pelo resto das suas vidas.

— Não se preocupe com a gente, Floriano! Justiça que é justiça não pode punir quem a aplica. Já pensamos em tudo, replicou, sinistramente, Moacir.

— Acabou para você, Floriano! O fim da vida dela implica necessariamente no fim da sua. Devemos isso a ela, sentenciou Larissa.

— Vocês não estão falando sério, não é mesmo? Vão me deixar aqui para morrer desse jeito? Isso seria desumano, argumentou Floriano, no último nível de desespero.

— Ao contrário de você e da sua turminha, nós não somos sádicos e nem selvagens. Vamos te dar uma oportunidade de não sofrer desnecessariamente, falou Larissa.

Calmamente, Moacir aproximou-se do transtornado colega e colocou um objeto no bolso do seu paletó.

— Eu peguei o seu celular, a sua carteira e as chaves do seu carro, pois você não precisará mais deles. Em troca, deixo algo que pode ser muito útil para você.

— O que é isso? perguntou o acorrentado com a voz rouca e os olhos esbugalhados.

— Isso é um punhal. Não é algo que possa livrar você das correntes, mas pode dar fim ao seu sofrimento. As correntes são compridas o bastante para permitir que você faça o movimento necessário, respondeu Moacir.

— Se e quando você achar que chegou o momento, use-o bem, assim como Virginia fez com a tesoura, sugeriu Larissa, com uma voz tétrica.

— O quê? Vocês enlouqueceram? Eu não vou fazer isso!

— Ah, esquecemos de falar uma coisa, não é mesmo querido?

— Verdade, querida! Floriano, nós lembramos que você tem uma fobia muito comum no seu belo currículo: ofidiofobia!

— Então convidamos algumas espécies de serpentes típicas da região, peçonhentas e não peçonhentas, para lhe fazer companhia nesse momento tão importante da sua vida.

— Talvez seja a hora de você finalmente superar os seus medos irracionais, então, assim que nós sairmos da cripta, elas vão entrar. Faça a sua escolha!

— Bem, Floriano, tudo explicado, precisamos deixá-lo agora. Temos compromissos profissionais amanhã e precisamos dormir um pouco, falou Moacir em tom de despedida.

— Adeus, Floriano, tenha uma boa noite, despediu-se serenamente, também, Larissa.

— Não! Não façam isso comigo! Eu não tive culpa! Foram os outros! Socorro! Socorro!

Alheios aos gritos desesperados do colega, o casal se afastou e abriu a porta da cripta em frente. Dessa, aos poucos, várias cobras de diferentes tamanhos e colorações deslizaram para fora e rastejaram em direção ao acorrentado, que gritava cada vez mais desesperadamente diante daquela visão.

— Imaginamos que você queira privacidade nesse momento, então, respeitaremos isso. Vamos, querida! finalizou, Moacir.

Com expressão grave, o casal entrelaçou as mãos e deu as costas para a cena dantesca que tomava forma.

— Vamos jogar o carro dele no mar agora ou esperamos mais um tempo? perguntou Larissa ao marido, enquanto faziam o caminho de volta para o ambiente social da residência.

—Temos tempo, melhor esperar até a meia-noite para diminuir o risco de cruzarmos com algum carro na estrada lá perto do penhasco.

— Verdade, ninguém deveria dirigir nessa estrada à noite, especialmente logo após tomar vinho.

— E não será o primeiro acidente nesse trecho da estrada em que o corpo do motorista não é encontrado.

— Certamente, as correntes marítimas nessa faixa do litoral são fortíssimas.

— Você deixou o tonel com ácido sulfúrico preparado?

— Sim, querido! Está em uma cripta ao lado da masmorra. Assim que o nosso coleguinha estiver pronto para o seu último banho, poderemos colocá-lo lá.

— Maravilha, querida! Pronto, já saímos do labirinto da justiça.

— Antes do nosso banho, que tal mais uma tacinha de vinho?

— Claro! Então, um brinde à Virginia! Que a sua alma descanse em paz!

— À Virginia! E ao próximo justiçamento de mais um dos seus assassinos, sussurrou Larissa, colocando mais uma garrafa de Alma Negra no gelo…

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