Circo
Vaga-lumes alquimistas
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Era o mês de junho. Pela noite fria, o espocar dos rojões e os muitos balões cintilando no céu da cidadezinha. Era o tempo das festas dos santos padroeiros. O circo ia sendo armado com aquele ritual de engenharia mambembe. Montar e desmontar e depois montar de novo. Tantas vezes eu vivi que parecia sempre como a primeira vez.
Circo armado, tudo preparado para a estréia triunfal. Aquela seria a noite de boas vindas às autoridades da cidade. Creio que estávamos em Dracena, Alta Paulista do Estado de São Paulo, no começo dos anos 60. O pai fazia as honras da companhia circense Motinha e Nhá Fia empunhando o violão. Em volta da fogueira, a grande roda de pessoas acomodadas em cadeiras e as crianças sentadas no chão. Era o espetáculo fora do espetáculo, pelo lado de dentro. O palco, o fundo do terreno do circo com nossas casas ambulantes fechando um semicírculo. O terreno fora cedido pela paróquia dos frades Capuchinhos.
Hoje posso afirmar que o meu primeiro contato prático com o divino, o sagrado, a magia -ou algum sentimento mais próximo dessas categorizações sobre-humanas-, ocorreria naquela noite. Ao longo da vida, nosso pai jamais deixou de contar e (re)contar a estória do único padre honesto, alegre e verdadeiramente humilde que conhecera: o italianíssimo e autêntico padre/artista Frei Fernando.
O pai convidou delicadamente nossa mãe para o início da cantoria; ali, a dupla Motinha e Nhá Fia já dava o ar da graça, antecipando assim uma relação de hospitaleira cumplicidade antes mesmo da estréia oficial. E Nhá Fia foi logo improvisando:
— Caros amigos, agradecemos a presença de todos após o dia duro de trabalho e oferecemos o que sabemos melhor fazer; que a noite fria não congele os nossos corações, caso contrário, a fogueira e o garrafão de vinho estão aí para que a gente se lembre que tudo começa por um bom começo!
Como sempre, nos momentos decisivos de nossas vidas, era nossa mãe Nair/Nhá Fia quem tomava a frente das decisões e da palavra. Durante toda a estrada foi assim: o pai, o mano, eu e o Divino, quatro homens apaixonadamente dependentes daquela “imensa mulher pequenina” –exatos um metro meio, da botininha à ponta do laço de fita também vermelha, no alto de sua cabeça- mas de coragem, sabedoria e coração infinitos.
E seguiram-se polcas, mazurcas, desafios, improvisos, xotes e muitas, muitas toadas sertanejas -as que eu mais gostava. Não tardou para que o frei capuchinho gordo, com barbas em cachos, bochechas avermelhadas, vestindo uma surrada batina marrom e calçando sandálias de fransciscano, surpreendesse à todos da companhia soltando a poderosa voz com forte sotaque italiano enquanto esgrimava, com denotado saber/prazer, o abrir e fechar de fole da sanfona vermelha feito suas bochechas. Cabe aqui lembrar que o espanto inicial ficou restrito aos integrantes da companhia circense, pois o delegado, o prefeito – um ex-major da reserva- e o venerável representante da Loja Maçônica local, que estavam presentes “fiscalizando” aquele bando de possíveis ciganos comunistas, já sabiam dos rompantes e dos antecedentes artísticos do bom Fernando.
Ao final da canção -acho que Sole mio-, a platéia não economizou nos aplausos. E foi então que teve início aquilo que aqui chamei de divino ou sagrado ou mesmo mágico. O pai permanecia calado, sorrindo e a tudo observando, enquanto a voz forte e grossa de Nha’Fia saudava o frei sanfoneiro e tenor:
— Bravo! Bravo! Salim, Neto, Norico, mandem o Divino soltar mais rojões para saudar o talento e a alegria deste amigo Frei, Frei….ah! Fernando! Frei Fernando, pois é uma honra receber o senhor no nosso humilde porém descente circo; e desde já, em nome de toda a companhia, convidamos o amigo frei para participar dos nossos espetáculos, na terceira parte, que é quando acontece o Show Radiofônico, pois o senhor canta e encanta com a voz, a alma e a humildade do Deus de todos nós, aquele que está presente em todos os momentos e nos corações sinceros e humildes!
Era a magia da política das circunstâncias em puro estado de manifestação. Naquela fria noite de junho o sagrado, o divino e o mágico estavam apenas começando para mim. E eu nem sabia dos mitos e de Dionísio.
O frei Fernando agradeceu as palavras, dando boas-vindas ao Circo Teatro Motinha e Nha’Fia. E saudou a chegada do circo, olhando diretamente e intencionalmente na direção onde estavam sentados -até então impávidos, soturnos, calados e colossos- o delegado, o prefeito e o venerável maçom que, a partir de então, como que por coincidência, passaram a sorrir, a cantar e a aplaudir as interpretações do elenco do circo no show improvisado, agora fortalecido por seu mais novo integrante: o sanfoneiro tenor da Ordem dos Capuchinhos Franciscanos.
Hoje já não tenho dúvidas de que tanto a Nair/Nha’Fia quanto o Mário/Motinha, tinham perfeita noção dos jogos de poder ocultos nas relações entre o circo teatro e as chamadas forças vivas das cidades por onde passavam; as diferentes representações que poderiam ser estabelecidas e as diferentes possibilidades de arranjos de conveniências resultantes dessas circunstâncias.
Ao longo de minha vida, encontrei inúmeros ensaios literários e citações na cultura universal destacando a figura do errante. Também denominado andarilho, bárbaro, mambembe, errante, vagabundo, circense ou simplesmente nômade, esses seres sempre provocam desconfiança e fascínio por onde passam. E continuam provocando. São vetores fundamentais na construção da história da humanidade; espécies de circuladores sociais. Vivendo o paradoxo do estrangeirismo, seguem em frente, libertos e libertários, ora com desconfianças ora com hospitalidade -como o caso do frei Fernando em Dracena. Mas seguem sempre.
Claro está que nossos pais poderiam ter logrado longas carreiras como políticos profissionais; preferiam um outro picadeiro, o do circo, o da vida que, convenhamos, é bem mais humano, honesto e real que o picadeiro da política oficial de poder, infestado de pilantras e pulhas de quinta categoria.
Mas a magia não parou por aí. Não era estranho para mim. Apesar de viver ainda o auge dos cinco, seis anos de idade, eu já convivera com a tribo do circo outras histórias e situações onde tudo parecia se transformar, se iluminar, como que por enquanto. A diferença era que, desta vez, eu estava refletindo sobre os fatos ao mesmo tempo em que eles estavam acontecendo. Talvez, hoje, narrando os fatos, eu modifique uma coisinha aqui, outra ali. Afinal, quem conta um conto…
Ocorre que são impressões da infância, de um tempo fragmentado em quadros/cenas, como fotogramas de um filme que eu não escrevi, não atuei e nem dirigi mas que teima em passar em minhas lembranças. Poder escrever sobre ele é capturá-lo, aprisioná-lo e torná-lo eterno. Como vaga-lumes memórias que sustentam a base do espelho onde se forma a memória do que sou e do que as imagens refletidas significam em relação ao muito do que os outros foram para mim. De certo mesmo, é que naquela noite algo de mágico, de mítico ocorreu… ah! ocorreu.
Já ia alta a madrugada e, do que me lembro ter visto e ouvido da janela do nosso ônibus-casa, destacam-se os acordes da sanfona do frei Fernando, a polifonia do coro de vozes entoando uma tradicional música de festas juninas… São João, São João, acende a fogueira do meu coração!… enquanto uma quadrilha de epiléticos dançarinos serpenteava pelo quintal do circo, puxada pelo delegado e o prefeito, fielmente abraçados a seus generosos garrafões de vinho tinto doce Rouxinol (arrrrrhhh!). Houve também a demonstração de paranormalidade e domínio da mente superior desastrosamente impetrada pelo tresloucado venerável maçom que, sem fôlego, insistia em caminhar de pés descalços por sobre as brasas ainda vivas da fogueira.
O Divino, nosso secretário da família, entre um copo e outro de quentão, mandava aos ares estrondosos rojões-de- vara. E a noite prosseguiu assim, mágica.
Da janela da casa-ônibus eu, com meus olhos arregalados de menino, teimava em ficar acordado contando estrelas e balões vagalumeando pelo iluminado céu da noite junina. Um menino sonhando com o futuro num fundo de terreno de um circo rodando pelo interior do Brasil.
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Gilberto Motta é escritor, jornalista e professor/pesquisador acadêmico. Nasceu num pequeno circo teatro no interior de São Paulo e nunca mais parou de viajar. Esta crônica integra o livro ainda inédito “Céu de Vaga-lumes: Andanças e Lembranças de Motinha e Nhá Fia e o Circo Imaginário”. Vive na Guarda do Embaú, pequena vila pesqueira no litoral Sul de SC.