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Trem

Vaga-lumes urbanos

Publicado

Autor/Imagem:
Gilberto Motta - Texto e Foto

“As crianças pulavam assustadas e, abraçadas, dividiam a dor das cacetadas. Os olhos esbuga1lhados de pavor e os ossos estalando dentro de seus corpinhos esqueléticos”.

1.

O trem ainda zunia quando eles saltaram.

“Trem-bala, trem-bão, trem-sangue limpo, trem-irmão…. Praia é pra bacana! Eu quero ver como fica o equilíbrio, gente-boa, tudo se racha é lá em cima, no teto, perto dos fios, perto da sorte… Surfista de trem é pra fera-radical de verdade, mermão!!!” – gritou Baby, ao pular a roleta.

Cruzaram a feira dos nordestinos, ganharam a praça central e invadiram a praia.

O arrastão durou menos de dez minutos.

Retornaram arrepiando bacanas pelo calçadão e surfando no teto dos ônibus-latão.

As gangues estão agitadas e a cidade explode a cada segundo. Repórter queimado e esquartejado no bosque do morro; comandos que se enfrentam com bazucas, granadas em pleno o carnaval. A cidade dividida expõe os seus cadáveres e esconde a hipocrisia dos homens.

2.

Zé chegou para vencer na cidade.

Ao fim da tarde entrou em uma briga no Largo da Alfândega. Resultado: seis pontos na testa, dois dentes perdidos e a primeira passagem pelo setor de correção.

Na mesma noite, de volta às ruas, batalhou rango na porta da boate gay.

Lá encontrou Inácio, o menino-anão:

______ Qualé, mermão? Dá essa cola aí, se não eu te enrabo!

______ Peraí, cara…qualé? Socorro…ajuda!!!!!!!!!!!

Assim Zé conheceu Inácio.

Davam bandas pela região da catedral; transavam cola, benzina e crack, e alguns trocados na região do porto. Arrasavam bacanas com o pessoal da gangue nas praias da zona sul.

Eram amigos, mas Zé ainda olhava para Inácio como um anão aprendiz:

______ Porra, cara! Bem que o mano pudia ir lá TV e pedir pra ser anão daquelas loiras gostosas, bundudas, pra descolar uns rango pra gente, né? Ah! Ah! Ah! – picava Zé, sem pudor algum.

Inácio fugia para as construções inacabadas, escondia-se nos esgotos-casa e não retrucava. Subia o morro e lá em cima parava um minuto para chorar.

Olhando a cidade, suas luzes e o movimento, encontrava uma calma difícil de se explicar. A cidade com milhões de pequenas luzes brilhantes:

______ São como estrelas… Igual ao céu quando não é nem claro e nem escuro…Só tem a lua, grandona e redonda…as luzinhas das estrelas ficam piscando lá no céu feito um monte de bichinhos…uma porrada de vaga-lumes iguais a diamantes voando, acendendo e apagando e piscando! – sonhava Inácio após o choro de todos os dias.

Passada a crise, o anão retornava ao bando.

Apesar dos onze anos, sabia das regras e das porradas que a rua impunha.

Pequeno em tamanho, Inácio não tinha medo de cara feia. Estava sempre na linha de frente durante as batalhas no calçadão. Nos arrastões, peitava os bacanas. Surfava em ônibus, subúrbios e até em metrôs.

Apesar das desilusões, jamais largaria a paixão por Zé.

Nem quando Zé perdeu um olho devido à pedrada disparada por um garoto de outra gangue. Inácio providenciou um tapa-olho. Muito menos quando a garota maluca meteu fogo na garrafa de cola com a qual Zé dormia abraçado.

O anão fez uma luva de saco de estopa para esconder a mão esquerda de Zé sem os três dedos perdidos naquela ação. Coisas da rua e da solidariedade.

3.

O sol rodava alto quando o policial baixou o cacetete:

“Vamos lá, belezuras! Vamos circular que isso aqui não é hotel cinco estrelas! Vai, porra! Eu não sou lixeiro de gente bacana….não ganho pra ficar limpando merda em prédio abandonado! Comigo é na porrada!”.

As crianças pulavam, juntavam os sacos plásticos com os restos que lhes pertenciam e, abraçadas, dividiam a dor das cacetadas.

Depois, corriam loucas sem rumo certo.

A garganta seca de cola da noite anterior, olhos esbuga1lhados de pavor e os ossos estalando dentro de seus corpinhos magros, esqueléticos à flor da pele.

Fugiram todos e ficaram escondidos na gruta da santa em plena praça do bairro.

Zé xingava Inácio aos berros:

______ Seu anão de merda! Você estava de butuca! Tinha que dá o bizú! Por causa de você eu levei porrada pra caraca, seu merda! Seu merda e anão! Anão! Anão mocinha!

4.

A noite chegou. Salvaram-se todos. Inácio libertou-se.

Na cabeça do menino-anão, as estrelas da noite teimavam em desafiar.

Escalou as pedras do costão e de lá chegou até a ponta do morro-base.

Olhou o mundo pela última vez e sonhou com as luzes da cidade e do céu.

Lembrou-se dos vaga-lumes que habitavam o morro quando ainda era um piralhinho.

Pensou nos sorvetes que tomaria, nos cabelos loiros de parafina que teria e nos dias em que seria médico em um hospital importante da cidade.

Uma lágrima rolou pelo rosto sujo do menino antes de saltar.

………………………………….

Gilberto Motta é escritor, jornalista e professor de comunicação. Mora, hoje, numa pequena pousada da vila de pescadores da Guarda do Embaú SC. Nas bocas das noites, caminha pelas margens do rio da Madre até o mar observando as nuvens de vaga-lumes.

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