Com todo o respeito
Valtencir não perdoava ninguém
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Valtencir não era um velho gaiteiro. Primeiro, porque não era velho, embora caminhasse rapidinho para esse status, tinha 56 anos bem rodados. Segundo, porque não era gaiteiro, e sim multi-instrumentista: gaita, violão, piano, saxofone, até bumbo, todos esses instrumentos eram metaforicamente postos a serviço de sua propensão, seu vício incorrigível, de cobiçar a mulher do próximo. De preferência quando o próximo não estava próximo, mas, se estivesse, azar o dele.
Isso o levava a não deixar passar um piteuzinho – mulheres dos 18 aos 78 – sem que lhe dirigisse um galanteio. Em geral sem a pretensão de marcar um gol de cama, só pra manter a minutagem, conservar-se em forma no gramado.
O quase velho mais que gaiteiro tinha um amigo de infância, Dermeval, dois anos mais novo que ele. A amizade permaneceu viva ao longo de cinco décadas, alimentada pela paixão clubística (ambos torciam pelo Flamengo), pela militância de esquerda, antiditadura militar e antibozo e por gostos compartilhados, entre eles a cobiça à mulher do próximo. Só que, como a realidade segue caminhos mais tortuosos que a ficção, Dermeval havia (temporariamente?) pendurado as chuteiras e estava vivendo um amorzinho gostoso com Teresa, uma lourinha 25 anos mais nova do que ele.
Certa tarde, ao passearem pelo Aterro do Flamengo, Dermeval e Teresa trombaram com Valtencir. Houve as apresentações, os “muito prazer”, e começaram a papear. O improvável casal percebeu, sem esforço, que os olhos do mais que gaiteiro brilhavam e que ele babava na gravata inexistente; era como se estivesse morto de fome e visse a moçoila transformar-se em uma suculenta coxa de frango, como sucedeu a Charles Chaplin no filme Em busca do ouro. Mais ainda, as mãos de Valtencir não paravam quietas – mas cada gesto que poderia ser ofensivo era acompanhado de um olhar mais de admiração do que de tesão, por um riso contagiante, cheio de simpatia, e pela frase “Com todo o respeito!”, que virou bordão.
Tipo assim:
– Que cabelo lourinho! Posso tocar? Com todo o respeito!
– Que rostinho lindo! Posso acariciar por um momento, só um momentinho? Com todo o respeito!
Era impossível zangar-se, sentir ciúmes diante de uma paquera tão ostensiva, mas tão pouco agressiva, no melhor estilo da malandragem brasileira. Dermeval estava se divertindo com os esforços do amigo para seduzir, com todo o respeito, a sua mulher; e decidiu dar-lhe uma chance, ver se ele aproveitava a minutagem e marcava um golaço.
– Olhem, Teresa, Valtencir, me bateu uma senhora dor de cabeça. Vou pra casa, são só dois quarteirões. Vocês continuem a conversar, deu pra perceber que estão gostando da companhia um do outro.
Deu um abração no amigo, um beijo na namorada e se afastou, recusando com um sorriso a oferta da moça para acompanhá-lo.
Teresa chegou no apartamento quatro horas depois. Deparou-se, como esperava, com o silêncio interrogativo de Dermeval e começou a explicar:
– Foi uma tarde agradável. Engraçado, a paquera a todo vapor parou quando você se foi; era como se estivesse se exibindo para você. Ele cessou de buscar pretextos para me tocar, foi um perfeito cavalheiro. Ou quase isso – de um risinho e prosseguiu. – Depois tomamos um chopinho, e só então o lobo mau voltou, propondo que fôssemos para um lugarzinho mais discreto e aconchegante.
Silenciou um instante, depois quebrou o suspense.
– Recusei, claro, só amo você, só faço com você. Agora vou tomar um banho, o sol estava forte – e abriu um sorrisinho monalisesco.
A menção ao banho e, em especial, o sorriso discreto deram-lhe a quase certeza de que Valtencir, aquele fiodeumaégua, havia aproveitado bem os minutos em campo e encaçapado. Sorte dele, Teresa era uma delícia, uma fera na cama, seus beijos enlouqueciam.
Dando de ombros, Dermeval cantarolou uma estrofe de Dom de iludir, de Caetano Veloso, uma de suas canções prediletas: “Você diz a verdade/ A verdade é o seu dom de iludir/ Como pode querer/ Que a mulher vá viver sem mentir”.
Em seguida, tratou de relaxar. A noite era uma criança, depois de um jantar leve regado a vinho teria a namorada em seus braços, precisava estar em plena forma.