Ouro falso
Velha tese dos 300 picaretas ressoa hoje como oração de cura de um pastor na TV
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No país das baixarias políticas, o pior para quem escreve ou gosta de expor suas percepções a respeito dos homens públicos é a existência do amanhã. Não fosse isso, certamente todos nós diríamos, sem censura íntima, tudo o que verdadeiramente pensamos deles. Como é proibido, sob pena de sermos taxados de comunistas ou de subversivos, nada melhor do que as metáforas e, às vezes, se apoderar de frases sérias e inesquecíveis de figuras que partiram, mas deixaram boas lembranças. Senhor das Diretas já, Ulysses Guimarães é um desses exemplos.
Deputado federal de 11 mandatos consecutivos e um dos principais opositores à ditadura militar iniciada em 1964, ele morreu defendendo a democracia. Citado pelo deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) em seu discurso de posse como novo presidente da Câmara, Ulysses foi – e continua sendo – uma referência para os bons políticos, consequentemente um cancro para os ruins. É de sua autoria a expressão que ainda hoje ecoa na cabeça de dez entre 11 homens públicos: “A única coisa que mete medo em político é o povo na rua”.
Verdade inquestionável e incontestável, mas, infelizmente, esquecida pela maioria dos eleitores, principalmente por aqueles que, por interesses privados, esqueceram que “na política do Brasil até a raiva é combinada”. Considerando que, no Congresso Nacional de nossos dias, pior do que as emendas só mesmo o contexto, vale lembrar uma das mais célebres locuções cunhadas pelo imortal Ulysses Guimarães: “Não se pode fazer política com o fígado, conservando o rancor e ressentimentos na geladeira. A Pátria não é capanga de idiossincrasias pessoais. É indecoroso fazer política uterina, em benefício de filhos, irmãos, cunhado. O bom político costuma ser um péssimo parente.”
Uma pena, mas boa parte dos mais de 150 milhões de eleitores brasileiros prefere o teatro da política, no qual todos fingem que se odeiam, mas se cumprimentam e se abraçam quando a proposta é financeiramente vantajosa. É a prova de que, hoje em dia, palavra de político vale tanto quanto a oração de cura de um pastor evangélico no horário nobre da TV. Sugiro aos que ainda pensam que tudo são flores uma longa reflexão em uma frase de 1948 do escritor alagoano Graciliano Ramos. Conforme o autor, a palavra não foi feita para enfeitar ou brilhar como ouro falso. Entendam como quiserem.
Para não ser injusto, reconheço que nem todo político é mentiroso, assim como nem todo eleitor é desinteligente. Entretanto, não há como negar que ambos existem e ocupam o mesmo espaço que nós. Também é inegável que as duas caras do político (cínico e mentiroso) andam sempre juntas. É da natureza de qualquer homem público. Desde os velhos tempos de repórter no Congresso Nacional, aprendi manuseando um manual de redação que não há nada mais inútil do que discutir política com políticos.
Passadas algumas décadas do dia a dia recheado de intrigas, mas farto de bons projetos, de boas intenções, de respeito ao povo e de relações geralmente integradas entre Legislativo, Executivo e Judiciário, o que se vê hoje são artistas trabalhando para fazer o eleitor acreditar neles até perderem tudo, inclusive a dignidade. Pragmaticamente cético em relação à classe, posso afirmar que nunca matei ninguém e jamais desejei a morte de alguém. No entanto, confesso que já li muitos obituários de políticos com grande satisfação. O Brasil precisa de um novo Ulysses Guimarães. Enquanto ele não vem, é bom que saibamos que, na política, quem está em evidência nem sempre é o melhor.
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Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978