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A CHOPEIDANÇA DE TONINHO BRANCO

Velhas lembranças trazem novas histórias para caçula

Publicado

Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

Uma volta à cidade natal revela que muita coisa mudou — menos Toninho Branco, com seu vocabulário torto e filosofias geniais de dar nó no juízo.

Após muitos anos sem retornar à cidade do interior onde nasci e meus avós moravam, venci minhas resistências e passei lá, num final de semana desses, levando meu filho mais novo, agora com 9 anos, para que ele conhecesse os recantos idílicos que tanto frequentei na infância.

É claro que, hoje em dia, tudo me pareceu estranho, mudado, bastante diferente. E a cidade das minhas memórias foi se perdendo aos poucos. Antes encantadora, dotada de um visual todo próprio, havia se descaracterizado profundamente com a modernidade e o crescimento. Várias casas, antes habitadas por famílias bem conhecidas e acolhedoras, haviam mudado de dono, quando não demolidas, e as cercanias da casa avoenga já não me faziam sentir tão íntimo daquelas paisagens.

Mesmo assim, meu filho ficou empolgado com a novidade e as histórias que lhe contei.

Uma delas decorreu de um encontro, ao acaso, com um velho amigo, na rua principal de comércio da cidade. Augusto França era o nome dele. Fora carteiro, funcionário municipal e, ultimamente, curtia merecida aposentadoria, enquanto tocava com sua esposa, Isabel, uma birosca bem frequentada, próxima à praça da estação.

Cumprimentou-me efusivamente, apresentei-o a meu caçula e entramos em conversa. Papo vai, papo vem, descobri o destino e o paradeiro de várias pessoas queridas da infância e da adolescência. Os que casaram, os que mudaram, os que morreram… Um, em especial, falou-me ao coração. Relembramos Toninho Branco, um tipo curioso, querido por todos. Fora empregado de meu avô por vários anos, e era muito divertido. Com um vocabulário próprio, filosofava sobre a vida e os fatos da cidade, fazendo nossa alegria.

– Sossega, menino – ele disse, certa feita, quando me viu passar correndo de bicicleta. – Vai acabar quebrando os pensamentos!

Toninho Branco era apaixonado por Dora, professora no grupo escolar, e tinha com ela uma relação totalmente platônica. Um dia, em época de eleições municipais, descobriu que um dos candidatos a vereador, Bernardino Freitas, arrastava as asas para sua amada. Ficou apreensivo. Estávamos no meio da multidão assistindo ao comício com os candidatos, quando Bernardino tomou o microfone e começou uma preleção sobre o lastimável estado das estradas da cidade. Toninho não gostou.

– Esse sem-carisma é curto de pensamentos. Erra ortografia até falando. Não aprovo.

E falava sobre sua amada sempre que podia. Derramava-se em elogios.

– A Dora? Aquilo é uma deusa… Um metro e sessenta de pura pedagogia e feitiçaria. Dei um Sonho de Valsa pra ela no dia dos namorados. Ela me deu uma olhada que até parecia recibo de rejeição.

Saiu-se, depois, com a ideia de montar um negócio. Vira numa cidade próxima, bem maior, uma churrascaria que vendia chope. Pela primeira vez, provara cerveja que não vinha em garrafa. Adorou.

Mas pensou que podia incrementar a coisa, para que os fregueses se entretivessem mais, e achou a saída brilhante:

– Vai ter banda atacando ao vivo, iluminação escura, vai ser uma belezura. Chope não pode faltar. Chope e dança.

– E o nome, Toninho, qual vai ser?

– Vai ser Chopeidança. E, se der certo, depois vou abrir o Sopeidança. Caldo quente, forró e ventilador de teto. Inovação é isso!

Quando soubemos que a antiga fazenda onde pegávamos leite ia ser vendida e transformada num loteamento, ficamos chateados. Mas Toninho, empolgado com o projeto que ouvira sendo divulgado, ficou maravilhado. Disse para meu pai:

– Ah, doutor, vai ser amodernamento puro pra cidade. Vão fazer casa de dois andares, uma luxúria sem tamanho! Banheiro com privada elétrica e tudo.

E quando soube que um primo meu, em breve passagem pela cidade nas férias, estava triste porque terminara um namoro? Foi logo consolando-o, desastrado:

– Não liga não, Pedro. Aquela sirigaita que veio aqui com você nem era bonita. Era metida a boi de cem contos, tinha muita frescura emocional. E um nariz de quem tomava iogurte com colher de ouro…

Perguntei, com medo da resposta, que fim levara Toninho Branco. Aliviado, ouvi a resposta de Augusto:

– Está ótimo, cheio de saúde. Parece até que o tempo não passou para ele. Trabalha com transporte de carga, tem um caminhão moderno! Ainda ontem encontrei-o antes do sol nascer, quando ia à feira, e ele, que ia viajar, me cumprimentou daquele jeito expansivo e filosofou:

– Trabalho enobrece o homem, Augusto, mas cansa um tanto que só vendo.

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Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

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