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Vovó e o café

Velho bule e xícara, e mamãe ralhava quando eu bebia

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Acabei de voltar do velório da minha avó. Soube há quase uma semana que ela não andava bem e, como moro na capital, pedi ao patrão uns dias de folga. Homem duro, talvez tenha se compadecido da minha dor, provavelmente porque perdeu a mãe há pouco.

Cheguei a tempo de segurar as mãos enrugadas de vovó. A pele bem fina, como se gasta pelo tempo, ainda que fria, conseguiram aquecer meu coração. Ela me ofereceu café, como nos meus tempos de menino.

— Mas não conte pra sua mãe, que ela vai dizer que não pode.

Fomos até a cozinha, onde lá continua o mesmo fogão a lenha de outrora. Naquela época não havia luz elétrica no sítio, e vovó andava com uma lamparina a querosene. Deixava uma acesa no corredor para o caso de alguém precisar usar o banheiro à noite.

Garrafa térmica também não havia chegado ao sítio. Vovó repousava o bule na lateral do fogão a lenha para manter o café sempre quentinho. E, se mamãe não estivesse por perto, eu tomava na mesma xícara da minha avó. Se ela me pegava, era aquela ralhação.

— Gilmar, quantas vezes já te falei que não pode beber café? Criança tem que beber leite! Mamãe, por favor, não dê mais café pro menino.

Minha avó me apertava junto ao seu corpo, enquanto mamãe continuava o falatório. Aqueles olhos acolhedores me diziam para deixar mamãe falar e não ligar para aquele monte de coisas ditas. Eu virava o rosto contra a saia de vovó e sorria mudo para que minha mãe não percebesse.

Vovó, sem o vigor dos meus tempos de menino, pegou aquele bule envelhecido, bem ao lado do fogão a lenha, e me serviu. Ela quis pegar outra xícara para também se servir, mas eu falei que preferia como fazíamos antigamente. Minha avó sorriu e se sentou ao meu lado. Foi a última vez que bebemos na mesma xícara.

E aqui estou na varanda do meu apartamento. Solitário, ferido porque a finitude me arrancou a melhor parte de mim. Pego a xícara na mesa ao lado e a levo aos lábios. No entanto, antes de sorver o café, sinto o aroma inconfundível de vovó. Que saudade!

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