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Cume, de Falcão

Viagem musical ao bordel onde o golpe fracassou

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo/Reprodução Freepik

Lá pelos idos dos anos 60, Wilson Simonal, o preto que mais incomodou a elite e os brancos, principalmente os intelectuais, cantou “O Brasil está vazio na tarde de domingo”. Na música Aqui é o país do futebol, o que ele quis dizer é o que eu digo hoje: domingo sem futebol é o mesmo que o Brasileirão sem o Flamengo, o rádio sem Ary Barroso, os campos de futebol sem grama original, o banco de reservas sem Zagallo, a Alemanha sem Beckenbauer, os cruzeiros marítimos sem o rei Roberto Carlos e o Brasil sem democracia.

Na ausência do contato alegre com a Nação Rubro-Negra, usei o domingo, 8 de janeiro, também conhecido como o dia que acabou com a carreira de um falso profeta, para cutucar meus alfarrábios cinéfilo-musicais e viajar na maionese da história cinematográfica e musical.

De imediato, imaginei um encontro interestelar em um bordel de periferia entre o mundialmente amado Dr. Spock, do filme Jornada nas Estrelas, e o abobalhado Dr. Zachary Smith, da série televisiva Perdidos no Espaço. Híbrido (vulcano e humano), Spock é daqueles que todos odeiam amando. Ufanista, fã de Dom & Ravel (Eu te amo meu Brasil) e apegado a joias alheias, Smith se supera nas estultices. Por isso, a maioria ama odiá-lo.

Perplexo e esfuziante com o fracassado golpe planejado estabanadamente pelo pseudo cientista das causas perdidas, o oficial comandante da nave USS Enterprise respondeu à barbárie cometida pelo antagonista lembrando a saudosa Beth Carvalho: “Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão…” Não importa quem seja o traído ou o traidor. Importante é o desfecho da letra: “É, o teu castigo…/Eu vou festejar, vou festejar o teu sofrer, o teu penar…”.

Nas andanças cósmicas durante o domingo em que, no ano passado, a República e a democracia enfrentaram os horrores produzidos por mercenários e comandados por renegados bastardos, nada melhor do que tripudiar sarcasticamente de uma intentona que serviu apenas para que o Satanás de rabo quebrasse a cara. É claro que, antes, ele e seus “patriotas” quebraram a Praça dos Três Poderes, incomodaram o povo ordeiro, mas não assustaram El Diablo de barba, também conhecido por Sapo Barbudo.

Não foi uma briga de sacos roxos porque dessa cor somente um tem. Imbrochavelmente covarde e sem apoio, o outro fugiu correndo para se avistar com o espantalho Trump, primo irmão do Pato Donald. Sem papas na língua, Dr. Spock, agora travestido de excelência na terceira encarnação, levantou a espada e berrou: “Se você quer brigar…/Pode vir quente que estou fervendo…”

Pífia, a reação de Smith pipoqueiro incomodou o também saudoso Altemar Dutra: “Acabei de saber que você riu de mim/E depois perguntou se eu vivi, se eu morri…” A réplica partiu de um desses supostos comunistas escondidos em um dos quartos da esquerdopata casa de saliência: “Meu docinho de coco…/Minha Brasília amarela/Tá de portas abertas/Pra mode a gente se amar/Pelados em Santos”.

Vixe! Metido a gótico, punk, skinhead e avexado como Mohamed, o cidadão em questão preferiu se aquietar e ameaçou solfejar mais uma de Altemar:“Que tolice nós dois brigarmos tanto assim/Se depois vamos nós a sorrir/Trocar de bem no fim…/Para quê?/Se essa gente o que quer é nossa separação…”

O bicho pegou quando, escondidos em uma beirada do céu estelar, Lupicínio Rodrigues e Jamelão autorizaram o atual a adaptar e cantar para o ex o clássico Ela disse-me assim: “Tenha pena de mim/Vá embora…/E o remorso está te torturando/Por ter feito a loucura que fez/Por um simples prazer/Foi fazer o Brasil infeliz…”

Mais uma vez, a resposta de Darth Vader foi chulé: “O sapo não lava o pé/Não lava porque não quer/Ele mora com a Janja na lagoa/Não lava o pé porque não quer…”

Convenhamos que, como era o próprio, a tréplica foi meio sem graça. O que mais chamou minha atenção foi o fato de, ainda que de forma fictícia, eu reunir dois antagônicos registrados em cartório circulando no mesmo ambiente sem xingamentos. Nada sobre ladrão, corrupto, miliciano, genocida, mensaleiro, baitola, paneleiro, joinho ou coisas do gênero.

Engraçado foi ouvir a pedida de um forasteiro do bordel ao cantor solo do sagrado recinto. “Canta aí Cume, do astro Falcão”. Meio desajeitado, o sujeito pegou o reco-reco e tascou: “No alto daquele cume…/Plantei uma roseira/O vento no cume bate/A rosa no cume cheira/…Quando cessa a chuva/No cume volta a alegria/Pois torna a brilhar de novo/O sol que no cume ardia…”.

Senti a picardia do moço, mas não captei no cume de quem entrou. Não sei, mas imagino. Antes que alguém pudesse tornear o salutar ambiente, lembrei que não valia música a respeito de John, de Paul ou de cornos. Isso não é papo de homem. Afinal, todo corno é um protegido de Deus.

Só ameacei parar de sonhar quando adentrou o pudico salão uma turma liderada pelo japonês da Federal. Apesar dos males irreparáveis causados ao Dr. Spock por determinação do moço da vara sem vaselina, o japonês é coisa do passado.

Acompanhado de backing vocals nordestinos, o japonês – outrora um “patriota” embandeirado e entrincheirado nas redondezas do QG do Exército – soltou a voz: “Ai, ai, se eu te pego…”.

Ainda no espaço etéreo, viajei rapidamente pela trajetória do imortal Jorge Ben, cuja proteção divina é a mesma que, nos anos 60 e 70, protegeu Julinho da Adelaide, o meu, o seu, o nosso Chico Buarque. Como se fosse um recado aos terrivelmente “patriotas”, Ben mudou o dia para Domingo 23 e pediu a Jorge da Capadócia para, montado em seu cavalo branco, mostrar aos seguidores do ódio que, “com uma rosa e o cantar de um passarinho, nunca nesse mundo se está sozinho”. E salve Jorge, salve Jorge.

Acordei desse sonho louco com o fundo musical do rapper Jax Maromba, a quem nunca fui apresentado: “Se liga no Xandão, mata a cobra e mostra o pau/O último herói que derrota todo o mal…/Quem exala energia?/O super Xandão…” Eita que sonho doido. Doido, mas real no amadorismo “golpístico” do mito fraudulento. O que ele fez de fato foi consolidar a democracia.

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