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Vila Amaury, que abrigava candangos, morreu quando o Lago Paranoá nasceu

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José Escarlate

Pouca gente a conheceu. E quem conheceu, não lembra mais. Ela morreu para dar lugar ao Lago Paranoá, fazendo história. Um misto de luxúria e pobreza hoje, às margens com suas belas residências, o Lago Paranoá esconde em suas águas um dos primeiros núcleos, implantados no sítio da futura capital, que abrigava os candangos vindos de todas as partes do país para construir a cidade.

Era a Vila Amaury, que chegou antes, mas que antes também, foi embora. Ali viviam os operários que construíam o conjunto do Congresso Nacional – a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. O anexo do Congresso Nacional ficou conhecido entre os operários como o ”Vinte e Oito”, o edifício mais alto em construção.

A Novacap tinha um setor da carpintaria destinado apenas a fazer caixão. Sabe-se que, só de uma vez, despencaram nove trabalhadores do elevador do “Vinte e Oito”. O carpinteiro de plantão – sempre tinha um – era acordado no meio da noite para fazer novas urnas. Havia, inclusive, alguns caixões de reserva, para dar conta dos pedidos.

O acampamento era dos mais rústicos. O número de barracos aumentava assustadoramente a cada dia. A maior parte era improvisada com sacos vazios de cimento. Daí ganhar, na boca dos operários, o codinome de Sacolândia.

A Vila Amaury tinha também a sua linha mística. Se o Lago Paranoá não borbulhasse todos os dias, teríamos que enfrentar, principalmente nos seis meses de seca, do calor à secura do clima. Era o nariz sangrando, os lábios super ressecados, dor de cabeça, sinusite e tontura, o que não é raro. Às vezes pensávamos que, com o tempo, o organismo e o corpo se acostumariam, mas não é bem assim. Pelo contrário. Vê-se que, com a passagem dos anos, o período de estiagem vai se ampliando, fazendo com que a umidade nos deixe ao largo.

Pessoas que moram bem afastadas do lago Paranoá acreditam que os benefícios da umidade não chegam até eles. É um engano. Sem a umidade transmitida pelo Lago Paranoá, Brasília viraria o caos. A Vila Amaury era uma localidade dormitório onde viviam, como Deus deixava, mais de 16 mil pessoas. As condições eram subumanas onde predominava o mais baixo nível de higiene. A luz chegava através de gambiarras, produzida por geradores. Não havia conservação de alimentos e tudo por lá era degradante. Os índices de criminalidade, altos. A polícia, a GEB – Guarda Especial de Brasília – era conhecida pelos candangos como “bate paus”. Esses gebianos eram bastante violentos não apenas com a população operária. Recém-criada, a Associação Comercial de Brasília pedia a sua extinção: ”Não temos policiais, mas, sim, bandidos que vestem fardas” – acusava.

Havia uma rua comprida onde a peãozada se encontrava nas poucas horas de folga, aos domingos, para descansar da rotina pesada da construção dos prédios, trabalho que entrava freneticamente pelo dia e noite adentro. Isso, para os que não tinham turno extra a cumprir. Ao longo da rua havia um comércio, com seus bares sempre frequentados pelo candango em busca de cabrochas, das “primas” e dos tira gostos, embalados pela música, “a pedido”, tocada pelo sistema de alto falantes. O espelho d’água, ao longo dos 38 quilômetros do lago esconde, além de seus segredos, pertences dos antigos moradores. Um dia, as águas foram subindo e as casas ficando submersas. O candango resistia em sair. Uns, juntavam suas trouxas e iam embora, levando o que podiam levar.

Todos foram avisados pelos engenheiros de que o vilarejo era provisório. Que a vila seria inundada quando fosse formado o Lago Paranoá. A represa ficando pronta, a água chegaria com o tempo. Quando o lago atingiu a sua cota 1000, as águas estendiam seus braços abertos para o Plano Piloto, marcando o fim da Vila Amaury, que nascera Bananal, mas ganhara o nome de seu líder comunitário, Amaury Almeida. No dia 2 de maio de 1959, chegava a Brasília – imenso canteiro de obras – um avião especial da FAB trazendo acomodados em várias piscinas 1,5 mil exemplares de alevinos, peixes selecionados pela Divisão de Caça e Pesca do Ministério da Agricultura para servirem de reprodutores no novo Lago Paranoá.Para o presidente JK, o lago era a “moldura líquida da cidade”.

No dia do seu aniversário, 12 de setembro de 1959, Juscelino aciona a engrenagem fazendo descer a comporta de ferro da barragem das águas do Lago Paranoá, que começa a se formar. Atingida a cota 1000 após as chuvas de 1961, intensas, foi nesse dia que JK enviou ao engenheiro e escritor Gustavo Corção um irônico telegrama que dizia simplesmente: “Encheu, viu?”. Corção, além de ser contrário à construção de Brasília, defendia a tese de que o lago jamais encheria devido ao solo poroso.

PV

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