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O barro, Adão e Eva

Visão simbólica da criação no imaginário religioso

Publicado

Autor/Imagem:
Magda Vasconcellos, Especial para Notibras - Foto Editoria de Artes/IA

A narrativa bíblica da criação do homem e da mulher, descrita no livro do Gênesis, está entre os relatos fundadores mais influentes da civilização ocidental. Segundo o texto sagrado, Deus molda Adão a partir do barro e, mais tarde, cria Eva a partir de uma costela retirada do primeiro homem. À primeira vista, a história pode soar literal, ingênua ou até biologicamente implausível aos olhos modernos. No entanto, uma análise histórica, simbólica e antropológica revela camadas de significado que vão muito além da ideia de um “boneco de barro”.

A imagem do barro, presente em diversas culturas antigas, carrega um simbolismo poderoso. Na Mesopotâmia, no Egito e em tradições sumérias, a humanidade também surge moldada a partir da terra. O barro representa a matéria bruta, o elemento comum, frágil e perecível. Ao afirmar que o homem é feito do pó da terra, a tradição judaico-cristã reforça a ideia de humildade: o ser humano não é divino por natureza, mas nasce da mesma substância do mundo que habita. A vida surge quando Deus sopra o “fôlego de vida”, indicando que o diferencial humano não está na matéria, mas no princípio vital que a anima.

Já a criação de Eva a partir da costela de Adão tem sido alvo de leituras controversas ao longo dos séculos. Interpretada literalmente, serviu muitas vezes para justificar estruturas patriarcais e hierarquias de gênero. Contudo, estudiosos do hebraico antigo observam que o termo traduzido como “costela” (tsela) também pode significar “lado” ou “parte”. Assim, a mulher não seria criada de um osso secundário, mas de um lado do homem — uma imagem que sugere proximidade, igualdade e complementaridade, não subordinação.

Nesse contexto, a narrativa parece menos preocupada em descrever um evento biológico e mais em oferecer uma explicação simbólica sobre a condição humana. Adão representa a humanidade primordial, o ser humano ainda não dividido em papéis sociais, gêneros ou culturas. Eva surge como a alteridade necessária: o outro sem o qual não há sociedade, linguagem, desejo ou história. A criação da mulher marca o fim da solidão original e o início da vida em relação.

Do ponto de vista teológico, o relato cumpre também uma função moral e existencial. Ao situar a origem do homem na terra e da mulher no próprio homem, o texto afirma a interdependência humana e a responsabilidade mútua. Não se trata apenas de explicar “como” o mundo começou, mas de responder ao “quem somos” e “por que precisamos uns dos outros”.

Na modernidade, ciência e fé seguiram caminhos distintos. A biologia explica a origem da espécie humana por meio da evolução, enquanto a teologia preserva narrativas simbólicas que falam de sentido, propósito e valores. A história de Adão e Eva, nesse cenário, permanece viva não como um manual científico, mas como uma metáfora fundacional que atravessou milênios, moldando visões de mundo, códigos morais e estruturas sociais.

Assim, o “boneco de barro” não é um erro primitivo de explicação, mas uma linguagem poética de um tempo em que os mitos eram a forma mais sofisticada de pensar o mistério da existência. Ao invés de descartá-la como fantasia, compreender essa narrativa é entender como a humanidade tentou — e ainda tenta — dar forma às grandes perguntas sobre origem, identidade e destino.

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