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Rainha festeira

Xaropes de ontem me dão força para viver o amanhã

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo

Dia desses, depois de cumpridas todas as tarefas caseiras, resolvi dar um apaguei na avalanche diária de zap zaps recebidos. Entre uma e outra deletada, descobri que no Brasil o aposentado é lembrado em duas datas, uma oficiosa (8 de novembro) e outra oficial (24 de janeiro). Mesmo que a maioria dos trabalhadores que ralaram boa parte da vida não seja respeitada, isto é, não consiga viver dignamente com os recursos da aposentadoria, o Dia do Aposentado não é uma brincadeira de mau gosto ou piada maquiavélica. Ele realmente existe e foi criado pelo Decreto 6.926/81, originário de uma lei denominada Eloy Chaves, assinada em 1923, pelo então presidente Arthur Bernardes.

Como estabelece o texto do decreto, a data é destinada a “homenagear os profissionais que se dedicaram a vida inteira ao trabalho e agora usufruem dos benefícios da Previdência Social, recebendo do governo uma gratificação por todos os anos de serviços prestados ao país”. Aí começou a ficar séria a brincadeira. Benefícios, gratificação ou merreca? Seja lá qual adjetivo queiram dar ao salário pago pelos governos ao trabalhador que se lascou por 35, 40, 50 anos, a verdade é que aposentadoria é sinônimo de obrigação descabida a um povo rebelde que insiste em viver após cumprir seu compromisso com a labuta. Parece absurdo, mas é verdade. É o velho cada vez mais novo.

Para o governo – não importa qual -, o aposentado é um peso morto, improdutivo e gastador. E não interessa o que já tenham produzido de útil para a nação. O governo e os governantes esquecem que, conforme dados do IBGE, dos 213,3 milhões de brasileiros, 37,7milhões são pessoas idosas, ou seja, com 60 anos ou mais. E, com muita sabedoria, esse povo ainda vota, tem desenvoltura para escolher seus mandatários. Leio com frequência – e concordo – teses geriátricas que afirmam ser crendice imaginar que, ao envelhecer, o ser humano fica mais pacato e dócil, como geralmente é mostrado na TV. Embora mude a forma de expressão, desobrigue os antigos do modo politicamente correto, a rebeldia jamais se apaga. É mentira que os idosos mais avançados e aculturados falam baixinho, não entram em embates e estão sempre abertos a ouvir e acatar opiniões alheias.

Também é ficção achar que, fora as doenças da idade, o tempo muda tendências ou traços comportamentais. Rudemente, ele (o tempo) é apenas um “escultor de ruínas”. O resumo da ópera bufa é que ser velho é cada vez mais novo. Como ensinam os jovens, é clean, modernoso e nunca excludente. Festeira e espigada, a Rainha Elizabeth é o maior exemplo disso. Aos 95 anos, não perde uma solenidade festiva e vez por outra toma uma calibrina, o popular mé. Como ela mesma diz, a pessoa tem a idade que sente ter. Com a Previdência quebrada por uma série de fatores extra campo, o governo central ainda terá de conviver por muitos anos com a rapaziada encostada no INSS. Como eu, os “véios” de hoje são indisciplinados e, caso a morte realmente seja descanso, todos preferem viver cansados.

A maioria não tem qualquer preocupação em escalar telhados, dirigir com a carteira vencida, tomar tragos além do limite e, consultando os “médicos” dos botecos, usar medicamentos que não deveriam. Me cuido, mas nada melhor do que uma viagem no tempo quando o assunto são os remédios. Nascido e criado nos subúrbios do Rio de Janeiro, fui acostumado a benzedeiras, costumes e curiosidades. Médicos era um para tudo. Normalmente caseiras, as receitas tinham emulsões, xaropes e fórmulas ardidas, mal cheirosas e com gosto horroroso. No entanto, sabe-se lá como, todos funcionavam. No rádio a pilha e na televisão a carvão, a galera do século passado consumia diuturnamente reclames de remédios, além, é claro, dos próprios. Tenho certeza de que foram os xaropes de ontem que me dão força hoje para viver o amanhã.

Vitaminas eram as campeãs dos comerciais, mas antissépticos também tinham seu minuto de glória. Mais interessante é que, dos medicamentos recomendados pelos vizinhos e usuários de boticas, uns foram esquecidos, mas alguns permanecem na crista da onda. Rhum Creosotado (xarope), Fosfosol e Memoriol (para memória), Anapyon (antisséptico) e 1 Minuto (para dor de dente) sumiram das prateleiras, assim como os milagrosos sabonetes Eucalol, Cinta Azul, Cashmere Bouquet, Gessy e Lifebuoy. Entretanto, quem não se lembra ou nunca utilizou o Regulador Xavier (as mulheres conheciam bem), Emulsão Scott e Biotônico Fontoura (fortificantes), o laxante Óleo de Rícino e os indispensáveis Merthiolate, Vick Vaporub e a pomada Minancora, não perca tempo, pois as boas casas do ramo continuam comercializando.

Resumindo toda essa história, não é demais dizer que aposentar é bom, mas viver da aposentadoria não é fácil. Nos esforçamos para construir um país melhor, mas recebemos o pior desse mesmo país. O trabalho realmente nos ensinou a ter boa lembranças, mas o salário. Não aposte sua vida no fim de sua existência. O governo, sua empresa e sua aposentadoria não garantem vida eterna. Por bem ou por mal, aposentar é o fim de todos. Pelo menos entendi que, no Brasil, cultura e conhecimento são coisas para depois de pendurar as chuteiras. Minha teoria estabelece que a única coisa velha que não tem o direito de se aposentar são as ideias. Por isso, aposentadoria é para quem nunca fez o que quis. Quem faz o que gosta não quer parar nunca. É o meu caso.

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