Prometeu .2
Zeus tinha um fraco por Hércules, um dos seus filhos
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Às vezes, bem raras, dá pra saber como se originou um texto.
No caso de Proust, foi o odor e o sabor de uma madeleine mergulhada em uma chávena (de chá, evidente) que provocou sua epifania e liberou a tempestade de memórias que se materializaram no monumental romance Em busca do tempo perdido.
No meu, foi uma postagem no Facebook.
Aconteceu na página do grupo Mitologando, que administro. Um amigo postou “Prometeu trouxe o fogo aos homens”. E acrescentou: “Ao roubar o fogo dos deuses, Prometeu deu aos homens o poder da civilização – mas foi punido eternamente”. Complementando o texto, a figura de um homem forte, acorrentado a uma rocha. Tudo nos conformes.
Comentei de imediato, no post: “Prometeu prometeu. E cumpriu”. Era uma brincadeirinha, um jogo de palavras que escutei na adolescência. O que me fez lembrar de outra brincadeira, um cartoon glorioso, creio que de Jaguar (minha memória é uma lama). Mostra o atleta acorrentado, enquanto uma águia – encarregada por Zeus de devorar diariamente o fígado do transgressor, que se regenera durante a noite – faz carinha de nojo e comenta: “Pior pra mim, que detesto fígado!”
Nesse momento, pensei que esse episódio mitológico era bem conhecido. Mas havia uma continuidade na trajetória de Prometeu, Ignifer, o portador da chama, mais importante para os homens que Lúcifer, o portador da luz. Designei essa sequência como Prometeu .2. Espero que vocês gostem.
Héracles (que chamamos pelo nome romano de Hércules) vinha saltitando alegremente pelas trilhas montanhosas do Cáucaso, quando se deparou com um homenzarrão acorrentado a uma rocha, gemendo de dor, enquanto uma águia lhe devorava o fígado. Soube na hora que era Prometeu, o titã que dera aos homens o fogo dos deuses. Decidiu libertá-lo – mas, para isso, precisava pedir autorização a seu pai Zeus, que havia imposto o castigo.
– … Então é isso, painho. Prometeu tá sofrendo, até a pobrezinha da águia tá sofrendo, parece que ela detesta fígado. E, convenhamos, 30 mil anos de pena é pena pra dedéu. Não dá pro senhor perdoar o delito dele e autorizar que eu o liberte?
Zeus coçou e afagou a barba. Tinha um fraco pelo forte Hércules, o preferido entre seus muitos filhos. Afinal, concordou.
– Autorizo sim. Mas você tem de descolar um otário, quer dizer, um imortal que troque de bom grado sua imortalidade pela sorte miserável de Prometeu, aquele fiodeumaégua.
Hércules agradeceu e seguiu viagem. Afinal, em outro episódio da mitologia helênica, uma flecha envenenada, lançada por ele, feriu o sábio centauro Quíron, que tinha sido seu preceptor.
– Porra, dói pra cacete – lastimou-se Quíron. – E vai doer para sempre, pois sou imortal.
Uma luzinha acendeu na cabeça de Hércules.
– Se quiser, mestre, sei como deter seu sofrimento. Mas vai custar sua vida…
Quíron ouviu tudo e aceitou a exigência do deus supremo.
– Diga a Zeus que topo substituir o pobre Prometeu, desde que eu morra rapidinho, não aguento mais tanta dor!
Hércules informou seu pai, que concordou com o esquema. Quíron e o semideus chegaram de noite à rocha-prisão de Prometeu, cujo fígado se regenerava para mais um banquete de águia. O titã chorou de emoção, ao saber do que aconteceria.
No dia seguinte, quando a águia investiu para mais uma refeição de fígado cru (argh!), Hércules a agarrou pelo pescoço e o torceu. A nobre ave quase cacarejou, como se fosse uma galinha presa no terreiro, e bateu os esporões das patas.
Os lances seguintes foram rápidos. Hércules libertou Prometeu das correntes, quis prender Quíron em seu lugar, ouviu um
– Não precisa, não saio daqui, meu único desejo é ir logo para os domínios de Hades…
Mas o semideus o acorrentou mesmo assim, era a ordem de Zeus, ele manda, obedece quem tem juízo.
Os três personagens tiveram destinos diversos. Quíron, por sorte, morreu logo. Comovido por seu sacrifício, Zeus o levou para o céu, onde se tornou a constelação de Sagitário.
Hércules, por sua vez, vestiu uma túnica envenenada com o sangue do centauro Nesso – vítima, juntamente com Quíron, de flechas envenenadas disparadas fazia tempinho por ele próprio. Zeus o transformou de semideus em divindade plena e o levou para o Olimpo.
Finalmente, Prometeu, titã e imortal, deve estar bundando até hoje por aí.