Empertigado
Paulo César acordou de pá virada
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Acordou disposto a não ceder nem um milímetro no que quer que fosse. Não, não e não! Também não seria o primeiro dia em que despertara daquele jeito todo invocado, como se fosse James Brown. Melhor! Que nem Ney Matogrosso e pronto! Que viessem as vaias, ele se postaria diante de todos, com o corpo empertigado igual girafa ao buscar a folha mais alta de acácia.
Pegou o elevador e percebeu dona Lucimara, antiga moradora do prédio. Ergueu o queixo e coçou o pescoço. Nem mesmo uma única palavra. Mudo. Completamente calado, enquanto a vizinha aguardava ao menos um bom-dia, que não veio.
— Hum! Acordou de pá virada hoje, Paulo César?
O sujeito fuzilou a mulher com olhar de falcão prestes a agarrar a presa. Nada disse. Simplesmente ajeitou o bigode diante do espelho do elevador e, assim que esse parou no térreo, desceu na frente sem qualquer gentileza.
Passou pelo Gilberto, o porteiro, e nem o breve aceno de cabeça, como costumava fazer. Mal saiu do edifício, dona Lucimara comentou:
— Você viu, Gilberto?
— Pois é, dona Lucimara. O que será que deu no Paulo César?
— Aposto que isso é chifre!
— Chifre?
— Sim! Chifre e dos bons! Daqueles que doem até na alma.
— Mas, dona Lucimara, pelo que sei, o Paulo César está solteiro há tempos.
— Pior, então! Isso é falta!
— Falta?
— Falta, sim, Gilberto!
— Dona Lucimara, mas a senhora, hein!
— Ih, Gilberto, sei das coisas.
— Que coisas?
— De tudo! Tu-do!!! Tudinho!
— Por acaso agora a senhora virou filósofa?
— Sempre fui.
— Sério?
— Num tô te falando?
— Desculpe. Num sabia.
— Pois agora sabe. Sou filósofa! Filósofa da vida.
Enquanto a conversa se prolongava, lá ia o Paulo César, a passos largos, se sentindo o último biscoito do pacote. Decidido, destratou quem pode pelo caminho: o balconista da padaria, o dono da banca de jornal, o mendigo, a senhora que passeava com o cachorro, o vendedor ambulante, as crianças que brincavam de bola na rua e até o padre Francisco. Pois sobrou desaforo para todo mundo.
Após tanta ignorância, eis que o homem decidiu visitar a avó, que morava ali perto. Já fazia quase mês que não se viam e, não demorou, lá foi o mal-humorado bater à porta da velha.
— Paulo César, quem é vivo sempre aparece. Pensei que tivesse se esquecido da vovó.
Para surpresa da senhora, o neto nem a olhou nos olhos. Passou direto e foi até a cozinha, onde se serviu de café. A dona da casa, encucada com aquele comportamento, foi atrás do parente.
— O que foi? O gato comeu a sua língua?
O pavio da mulher, que nem era tão curto assim, findou-se. Ela aplicou um baita dum beliscão no braço do neto, que sentiu.
— Ai, vovó! Doeu, viu?!
— Olha aqui, moleque! Comigo não, violão! Aqui tem que pisar fofo!
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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