Mãe e filha
Entre o vestido e o sorvete
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A campainha não parava. Solange, imaginando se tratar das crianças da rua aprontando alguma, sorriu. Ah, moleques! Que época boa. Se soubessem… Mas não! Era Roberta, a filha do meio.
— Mãe! Mãe! Mãããããeeeee!!!
Assim que abriu a porta, a mulher foi questionada.
— Pô, mãe! Tá surda?
— Pensei que fossem os meninos.
— Meninos? Que meninos, mãe?
— Os da rua, ué.
— Hum! E por que viriam aqui na casa da senhora?
— Meninos são assim mesmo. Ou você já se esqueceu?
— Esqueci o quê, mãe?
— Ué, você e seus irmãos tocando a campainha da casa da dona Sebastiana e depois fugindo.
— Hum! Mãe, mãe, mãe! A senhora tá bem?
— Tô. Por quê?
— Ninguém mais faz essas coisas, não. Tá todo mundo ligado no celular.
Logo após entrar, Roberta quis saber se a mãe havia feito o bolo de fubá.
— Tá na cozinha. Mas não ficou bom.
— Hum! Quando a senhora diz que não tá bom é porque ficou ótimo.
Sentadas à mesa, as duas trocavam confidências. Quase nenhuma por parte da senhora, que andava alheia à correria do mundo. Passava os dias entretida entre poesias de antigos e novos autores, Cecília Meireles e Sarah Munck, Drummond e Luzia Couto, Augusto Frederico Schmidt e Daniel Marchi.
— Mãe, tem sorvete?
— Não.
— Hum.
— Seu pai gostava de flocos.
— Eu sei. Também é o meu favorito.
— Prefiro chocolate.
— Não era morango?
— Também.
— Será que aquela sorveteria da esquina tá aberta?
Solange olhou o relógio de parede. Quase cinco da tarde.
— Tá.
— Vamos lá?
A idosa, diante do sorriso de menina da filha, não sentiu a menor vontade de contrariá-la.
— Só vou colocar uma roupa melhor.
Cinco minutos depois, a mulher retorna e fica diante do espelho da sala.
— Roberta, minha filha, tô achando esta roupa tão feia.
— Então, troca, mãe.
— Não.
— Não?
— Sou velha. Tenho direito de me vestir assim.
Roberta achou graça daquelas palavras e, antes que pudesse dizer algo, a mãe complementou:
— Ah, meu Deus, como esta roupa é esquisita! Mas vamos, que o sorvete vai acabar derretendo.
As parentas gargalharam e se dirigiram à sorveteria.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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