O jornalista
Gente invisível
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Há uma fase da infância em que a imaginação é tão presente, que se confunde com a realidade. E foi nesse tempo em que Gilson queria ser invisível. Quer dizer, não só queria, como acreditava piamente que era. Só anos depois que percebeu que as pessoas podiam vê-lo. Era só uma questão de estar ou não interessadas em voltar os olhos para aquele pirralho, com cara de fome, cuja pele era marcada pelo barro vermelho de Brasília.
Antes mesmo de chegar à adolescência, Gilson teve certeza de que a vida pode e costuma ser cruel. As coisas belas que lhe contaram são destinadas a poucos. Quanto aos demais, que lutassem por migalhas porventura caídas. E foi justamente a partir daí que começou a preencher folhas e mais folhas com seus garranchos.
A princípio, o meninote não tinha consciência do que estava fazendo, mas, assim que a puberdade chegou carregada de hormônios, a revolta se instalou de vez. Escrevia para protestar contra tudo e contra todos e, quando não havia por que reclamar, reclamava pelo simples hábito de reclamar.
Protestou contra pai, mãe, tio, tia, irmãos, vizinhos, amigos e inimigos. O que não faltava era gente para o gajo reclamar. Suas ideias vinham do fígado e, por isso, era mais amarga do que a própria bile. E, quando tentavam florear seus escritos, Gilson se irritava, pois acreditava que apaziguar os ânimos era dar ainda mais força aos fortes.
Sem grandes expectativas, conseguiu vaga de repórter num pequeno periódico, onde começou a publicar suas amarguras. Lúcio, editor do jornal, logo percebeu que o rapaz possuía talento incomum para o drama e, desde então, lhe abriu meia página diariamente. Foi um sucesso.
Não se pode baixar a guarda. Quanto nos deparamos com problemas que parecem não ter solução, a infelicidade quer porque quer se instalar. E Gilson sabia disso melhor do que a maioria ao redor e, dessa forma, procurava ocupar a mente, nem que fosse com um Chicabon de Nelson Rodrigues. Mas o famoso picolé, quando imaginado por Gilson, não tinha o sabor adocicado, e sim o amargor da completa falta de alento em tempos cada vez mais sombrios na capital.
Era 1973, ano do assassinato da pequena Ana Lídia, que abalou a sociedade brasileira, mas foi incapaz de prender e condenar os verdadeiros culpados, já que os ditos cujos eram filhos de autoridades do mais alto escalão do governo federal. Nananinanão, meu pirão primeiro! Ame-o ou deixe-o!
— Te amo.
— O quê?
— Te amo!
— Por quê?
— Num sei. Quando a gente ama, Gilson, precisa ter um motivo?
Envolvido com tantas denúncias anônimas de assassinatos, torturas e desaparecimentos, Gilson não soube o que dizer. Aceitou o convite para um cinema por simples falta de forças de dizer não.
Lara era desquitada. Praticamente uma contraventora dos bons costumes. Ademais, sem filhos por simples capacidade de gerá-los. Perfeita, diriam alguns, por conta da impossibilidade de gerar bastardos de algum homem respeitável. Seria, então, mera válvula de escape para mais um dia estafante de um figurão.
Não foi naquele fim de tarde que aconteceu. Também não surgiu nos dias seguintes, mesmo após se amarem. Somente no final de dois ou três meses que algo começou a despertar no coração do Gilson.
— Te amo.
— Diz isso por educação?
— Educação?
— É!
— Não! Por que faria isso?
— Sei lá! Você que tem que saber.
— Te amo! Te amo, Lara!
No final de 1974, resolveram juntar os panos. Os vizinhos cochichavam sobre aquela pouca-vergonha. Houve alguém que pensou na possibilidade de acionar as autoridades, mas essa ideia foi deixada de lado. Quem se importaria? Que mantivessem ao menos portas e janelas fechadas.
Chegou a redemocratização. Liberdade, liberdade! Abaixo a censura!
Gilson e Lara ainda vivem no mesmo apartamento na Asa Norte. Sobreviveram. Uma vez por semana, ele escreve para um jornal virtual. Faz questão de relembrar os horrores da Ditadura Militar. É preciso.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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