Construção de Brasília
Onofre, o miserável
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Há gente que tem a mania de fracassar. Isso mesmo. Pode até parecer loucura, mas conheci um tipo assim, o Onofre. Pois você acredita que o gajo não podia ver uma oportunidade de fracassar que corria para ter mais um revés?! Loucura, insanidade, masoquismo, seja lá o que for, é isso que acontecia.
Onofre, assim como os demais na década de 1940 ali naquele quadradinho em Goiás, que nem sonhava se tornar a capital do país, vivia uma vida comum de menino. É verdade que a pobreza era flagrante, mas o então garoto nem se dava conta de sua situação, até porque lhe faltava tempo para pensar em outras coisas além de acordar cedo e ajudar o pai, meeiro, na lavoura e na lida de animais.
De tanto pisar em estrume, Onofre sentiu certo desconforto quando sentiu pela primeira vez a dureza do asfalto. Como se aquela vida corrida e cheia de fumaça e indiferença não lhe pertencesse. Fora alijado da roça pelos donos da terra, que não queriam mais saber daquele povo. Que fossem embora em busca de novos ares, mesmo que morressem sufocados por falta de perspectivas. Não era problema deles.
Quando chegou o tempo, alguns foram empurrados para o Rio de Janeiro, outros para São Paulo. Onofre, que não desejou fazer tamanha travessia, preferiu ficar pelas redondezas, ainda mais porque, com a chegada de milhares de trabalhadores, ditos candangos, de todas as partes, a região, que não parava de crescer, ofertava emprego para indivíduos sem muita qualificação. E o que antes era pasto, lavoura e mata, agora se transformara em canteiro de obras.
— Sabe fazer massa de cimento?
— Num sei.
— É fácil. Até burro aprende.
Aprendeu. E, que nem burro de carga, carregava o que fosse preciso nos ombros. E cada vez mais o peso encurvava a postura do homem, que mais parecia animal diante dos que detinham o poder de mandar. Melhor acatar ou, do contrário, era mandado embora, ainda mais porque, como estava no papel, a era da chibata havia ficado para trás. Mentira das cabeludas, que ninguém acreditava, mas não havia corajoso para abrir a boca.
Por destino ou coisa que o valha, eis que surgiu oportunidade de trocar o cabo da enxada por chicote. Receoso da mudança que se avizinhava, faltou-lhe ímpeto para cambiar o mundo dos miseráveis por algo que só conhecia através dos olhos dos acostumados a apanhar. Declinou.
— Num sei fazer isso, não, seu moço.
Um mais esperto tomou a dianteira e se prontificou a pegar o cargo.
— Pois eu aceito! E posso começar agorinha mesmo.
Menos desprovido de carnes, o minguado tratou logo de pegar o porrete antes que desistissem de lhe dar o emprego. E o primeiro a sofrer as agruras foi justamente o Onofre, que tropeçou nos próprios pés e derramou dois baldes cheios de massa. E toma! E toma! Que esse desperdício vai sair do seu salário, miserável!
Percebe-se logo acima que a vírgula entre salário e miserável poderia ser retirada, pois tanto Onofre como o salário que recebia eram miseráveis. Miséria, aliás, poderia ser o sobrenome do sujeito. Onofre Miserável. Não há mal mais apropriado do que esse para alguém tão afeito a sentir o gosto amargo do azedume da amargura. Se lhe tirarmos isso, é capaz do homem reclamar por sua ausência.
Psicologia, meu caro. Psicologia! Não raro, até os próprios entendidos se percebem em mato sem cachorro. E não pense você que a coisa parou por aí. Nananinanão! Se há raios que caem duas, três e até quatro vezes no mesmo lugar, esse é o tal raio da penúria, tão conhecido dos que praticam a mendicância.
Onofre não quis ou não percebeu a oportunidade de se tornar servidor público, seja na então da Guarda Especial de Brasília (GEB), seja de chofer de algum ministro de Estado, seja até mesmo de contínuo da Câmara dos Deputados. Era como se o sujeito jogasse contra o próprio time, que apitasse a favor do adversário, que fizesse de tudo para que o inimigo o sobrepujasse.
Não morreu esquecido, pois não havia criatura que se lembrasse do Onofre.
— Onofre?
— Sim.
— Que Onofre?
— Dizem que é um que vivia por aqui desde bem antes de Brasília.
— Dos Santos?
— Pode ser. Talvez Oliveira ou da Silva. Vá saber?!
— Num sei. Mas por que pergunta?
— Por nada.
— Por nada não pode ser. Se não, nem perguntava.
— Curiosidade apenas.
— Pois agora me lembrei de um Onofre. Acho que era mesmo Onofre. Morreu não faz nem um mês. Dizem que foi massa de cimento.
— Massa de cimento?
— Sim. Massa de cimento.
— E como é que pode um troço desses?
— Pois esse tal Onofre deu bobeira justamente quando um caminhão-betoneira derramou aquela montanha de massa de cimento. Só descobriram o sujeito dois dias depois. Duro que nem asfalto.
— Eita! Coitado!
— Ninguém liga, não. Era apenas mais um miserável neste mundo de Deus.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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