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Sacerdotisa do amor

Aceita a derrota, Jair do Cerrado, que dói menos

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Variação genérica atribuída aos cultos afro-brasileiros, sincretizados com influências da religião católica, do ocultismo, de cultos ameríndios e do espiritismo, macumba (do quimbundo ma’kôba) é apenas um instrumento de percussão criado na África, semelhante ao reco-reco. No Brasil, por meio de um processo de ampliação de sentido, o termo passou a referir também, de forma pejorativa, às oferendas ligadas às religiões de matizes africanas. Diferentes intérpretes revelam que essa religião surgiu no Sudeste brasileiro nas primeiras décadas do século XIX. As práticas nominadas “macumba” e associadas aos afrodescendentes podem ser pensadas como a origem da umbanda. Como religião cada um tem a sua, não quero discorrer sobre o umbandismo, tampouco a respeito de suas derivações.

No entanto, devo lembrar que, mesmo que induzido à maldade, umbandista é um ser do bem. Tenho provas incontestáveis disso na família e entre amigos sérios, devotados e, sobretudo, solidários. Para o filósofo Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas”. Por isso, cada um tem o direito de determinar, por si, o que é o bem e o que é o mal. Conforme Santo Agostinho, o mal é a ausência do bem, da mesma forma  que as trevas são a ausência da luz. Filosofia à parte, todo esse preâmbulo para afirmar que a maldade não é gerada pela religião, mas por quem a conduz. Particularmente, desejo sempre boa sorte a quem age com maldade, pois cedo ou tarde ele (ou ela) sempre precisará.

Aprendi com dona Alfredina que o mundo é um lugar perigoso de se viver. Não por causa daqueles que fazem o mal, mas por conta dos que observam e deixam o mal acontecer. Muitos anos depois descobri que Albert Einstein, o mestre dos mestres, era o verdadeiro autor da frase. Entre surpreso e feliz, a partir daí comecei a descobrir que, muito mais do que guerreira e batalhadora, a vizinha de falas longas também tinha atributos mentais, filosóficos, científicos e culturais, os quais pelo menos cinco dos seis filhos desconheciam. Rei do cinismo, Basílio era o artista da querida família. Seu dom artístico era de berço. Patriota até no nome de batismo, dona Alfredina, minha parceira de molecagens sérias e das hebraicas escrituras do Judas no Sábado de Aleluia, ensinou ao sujeito (meu amigo do coração) até a forma de chorar sorrindo.

Com a humildade do povo de Miracema, município do Noroeste do Estado do Rio de Janeiro, e extremada dedicação aos afazeres do lar e da rígida criação dos filhos Eliseu (falecido), Aloe Vera, Merylange, Alva. Acácia, além de Basílio, Alfredina vez por outra se arriscava em outras searas, inclusive as religiosas. De certa feita, para ajudar dona Alice, vizinha de chácara, aventurou-se pelos caminhos do além. Alice dos bolinhos vivia uma vida de cão com o marido Benedito, de quem apanhava um dia sim e outro também. Desesperada, Alice pediu a Alfredina a indicação de um pai de santo capaz de melhorar o jeitão violento de Bené ou afastá-lo em definitivo de sua humilde residência. Matreira, esperta e lógica, Alfredina coçou a cabeça, deu duas pensadas e disse a amiga que ela mesma resolveria o problema.

Estava criada para o resto da vida de ambas uma nova figura no bairro: Mãe Alfredina. A pretexto de fazer o serviço longe do safardana e pertinho de seus guias espirituais, entre eles Pai Jair do Cerrado, a nova curandeira semanalmente enviava à vizinha aflita uma lista de compras. Neófita no curandeirismo, mas sábia quanto às necessidades familiares, Alfredina não pedia nada com exagero. Também abria mão das marcas nobres. Exigia para os seis “guias” da casa apenas o suficiente para a semana: um pacote de cinco quilos de arroz Tio Hermínio, dois de feijão Ézio, sal Beíco, farinha, fubá, uma lata de óleo Pepé, uma galinha carijó e outra preta, usada para “trabalhos” mais específicos, mais pesados. Foi desse jeito que ela ajudou o velho Tião a alimentar os filhos por meses a fio. Soube dessa história somente 20 anos após o passamento de Mãe Alfredina, pessoa do bem, da paz e do amor, mas com expertise na arte da malandragem saudável.

Prova disso é que, a pedido do filho cínico, ela havia requerido sigilo de 100 anos em todas as ações nas quais utilizou Pai Jair do Cerrado como caboclo de frente. Por intercessão do babalorixá Bilú da Carumbé, conseguiu rapidamente “arquivar” seus feitos mitológicos nos porões do Palácio de Curicica. Como ainda não cheguei por lá, não posso afirmar, mas creio piamente que ela, a exemplo de Xandão aqui na terra, está no céu tentando catequizar Deus e o mundo. Como? Produzindo a listinha dos antidemocratas para o pasquim do judas. Mijou fora do penico, dançou. O primeiro nome certamente é o do suposto ideólogo e polemista Olavo de Carvalho, astrólogo de nove entre dez aprendizes do terror. De lá, a sacerdotisa do bem manda um recado para o Pai Jair do Cerrado: “Você perdeu. Então, aceite a derrota. Dói menos”. Sua benção, Mãe Alfredina. Saravá!

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