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Sacrilégio imperdoável

Adorar a dois senhores no Brasil pode custar votos dos dois lados

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior* - Foto /Reprodução das Redes Sociais

A exemplo da água e do azeite e dos rios Negro e Solimões, política, futebol e, às vezes, religião, não se misturam. Quando isso ocorre, o resultado estrogonófico é assustador. Paixões diferentes, definitivamente a bola rolando e o político politicando não deveriam fazer parte do mesmo cercadinho. Uma coisa é uma coisa, enquanto a outra verdadeiramente é uma coisa. A relação com o clube é apaixonante, vem da alma, do coração, do útero. Mais próxima do sadismo ou da necessidade, o elo com a  política é decorrente da fantasia ideológica, do fanatismo e, via de regra, da decepção. Não é dos melhores temas para quem não é mais do ramo, isto é, que há décadas “abandonou” o jornalismo esportivo.

As razões foram muitas, mas uma delas vai ao encontro do que pensa boa parte dos torcedores de hoje: o romantismo do futebol deu lugar ao mercenarismo. Não há atualmente um único jogador que vista a camisa de um clube com desejos incontidos de, na primeira oportunidade de engordar a conta bancária, beija o escudo do arquirrival. Tudo bem que isso faça parte do jogo, principalmente porque poucos são os clubes que ainda têm atletas para chamar de seus. A maioria está no bolso de empresários inescrupulosos, para os quais a agremiação e sua torcida são meros detalhes. Mas não é esse o mote desta narrativa. Esse domingo foi de ressaca para cerca de 42 milhões de brasileiros que torcem e morrem pelo Clube de Regatas do Flamengo.

Não foi uma derrota comum, mas a derrota da soberba, da falácia e, porque não dizer, da jumentização de quem comanda. Reitero não ser de bom alvitre essa mistureba nitroglicerínica. Entretanto, sou um desses flamenguistas que reagem com sensatez nas vitórias e nas derrotas e, por isso, não aceita o oportunismo barato e desprovido de coerência. Faz tempo a abertura das portas da Gávea para um inoportuno inquilino é lamentada por torcedores históricos. Bolsonarista de carteirinha, o presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, pode e deve ter suas preferências políticas. O que não lhe é permitido é flertar abusivamente com o poder, associando a imagem do Mais Querido a um presidente pouco querido e com nenhuma vinculação rubro-negra.

Aliás, por razões óbvias, ele (o presidente) está vinculado a todos as equipes campeãs, especialmente as mais populares. Ano passado, ele fez poses com a camisa do Palmeiras, logo após a conquista do segundo título da Libertadores. No sábado (27), quando as chances de vitória do Flamengo eram enormes, dom Jair Messias vestiu, sem se ruborizar, o manto rubro-negro, cunhando nas redes sociais a frase “somos todos Flamengo”. Acusado de pé frio, virou o Mick Jagger do Cerrado. Eu sou flamenguista, você não, cara pálida. Renato Portaluppi também não. Gremista roxo e bolsominion convicto, ele um dia se utilizou das camisas vermelha e preta, preta e branca e vermelha, verde e branca para “ganhar” o Rio de Janeiro. Ou seja, nada tem de flamenguista, botafoguense ou tricolor.

Na partida da simplicidade contra a vaidade e a soberba, Renato Gaúcho mais uma vez mostrou que ainda está muito distante do que seja um bom técnico. Quanto ao jogo, claro que o resultado não foi o dos meus sonhos mais primitivos. Venceu merecidamente o ítalo-brasileiro Palmeiras, hoje dirigido por um português que não perde a capacidade de se reinventar. Faz parte. Somos recordistas de títulos nesses últimos dois anos. Queríamos mais. Todavia, perder em Montevidéu, estádio de nossa primeira conquista internacional, acabou sendo divino. Foi uma daquelas derrotas que obrigam os protagonistas a pararem de levitar e a colocarem os dois pés no chão. Deus é onipotente e castiga os que falam demais e agem de menos.

Voltando à mistura, entendo que os principais riscos dessa esquizofrênica mestiçagem são a passionalidade e o rancor do torcedor. Melhor evitar a adoração pública a dois senhores. Se a eleição fosse hoje, dificilmente o chefe do Executivo federal conseguiria se reeleger com votos de palmeirenses e flamenguistas. Afinal, mentir sobre uma e outra camisa é um sacrilégio imperdoável. Se cuida, Latorraca. Esperteza de mais e sensibilidade de menos só atrapalham. De concreto, acho improvável que Bolsonaro, a partir do novo apelido de pé frio entre os rubro-negros, consiga votos de meia dúzia dos integrantes de qualquer nação futebolística. Em tempo, apropriando-me da criatividade dos fornecedores do zap zap, lembro que a dor de perder a terceira Libertadores é passageira, mas o orgulho de ser flamenguista é eterno.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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