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Bastidores da ocupação da UnB

Água no chopp e carne, e Ibaneis e Fábio Félix como pomba da paz

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José Seabra - Foto de Arquivo

Quando o oficial de justiça chegou lá na mansão, foi uma cena constrangedora. Quinze anos atrás, Márcio Thomaz Bastos, então ministro da Justiça de Lula, sentiu como se tivessem jogado água no chopp e açúcar na picanha quase ao ponto, que seriam servidos a um seleto grupo de convidados.

A ordem, assinada no gabinete de uma juíza, determinava o deslocamento de um contingente da Polícia Federal para desocupar a reitoria da UnB, então tomada de assalto por estudantes revoltados com a Lixeira de Ouro, batismo pomposo dado a um cinzeiro de chão comprado pelo reitor Timothy Mulholland.

Como ministro só responde ao STJ, Márcio demonstrou toda a sua indignação. Não mandou ninguém para a Universidade de Brasília, e mostrou o caminho da porta de saída ao portador da ordem para que os federais fossem acionados.

José Roberto Arruda, o governador do Distrito Federal que logo se veria engolido pela Caixa de Pandora, também não mexeu um dedo sequer para que a Polícia Militar se dirigisse à universidade e desse um fim ao movimento.

Quem saiu bem na fita foram dois personagens, na época meros coadjuvantes, e hoje do time de primeira linha. Ibaneis Rocha, vice-presidente da OAB, levou a pomba-da-paz para os insurretos. Não há nenhum registro oficial disso, mas sabe-se que o agora governador trocou ideias com o ativista Fábio Félix, um dos cabeças do movimento ‘Fora Reitor’. Outro nome que deve ser obrigatoriamente citado nesta narrativa é o do advogado Ariel Foina. Coube a ele recorrer da decisão da juíza. E até hoje, recordam seus contemporâneos, deve compartilhar os louros da vitória.

Voltemos aos dois coadjuvantes. O estudante virou deputado distrital pelo Psol. Agora em seu segundo mandado na Câmara Legislativa, reeleito com a mais expressiva votação da história política de Brasília, é cogitado para disputar o Palácio do Buriti em 2026. Embora em campos ideológicos distintos, e como o governador respeita o deputado, e vice-versa, admite-se, a boca pequena, que a velha conversa pacificadora dê novos frutos ao longo dos próximos três anos e dois meses.

Mas, considerando que isso é coisa para o futuro, e como não acredito em bola de cristal, duende, coelhinho da Páscoa e Papai Noel, por ora vou me ater a fatos inéditos daquele período da tomada da reitoria da universidade pelos estudantes.

O ano foi 2008. Há 15 anos, Timothy Mulholland foi demitido da reitoria da UnB. acusado de reformar e mobiliar o apartamento que ocupava com recursos da universidade. Entre os utensílios, uma lixeira que custou 1 mil reais. O valor total dos desvios beirava a casa dos 470 mil reais.

As denúncias levaram estudantes a ocuparem o prédio da reitoria. Primeiro, um grupo de 100 moças e rapazes. Depois, uma multidão.

Uma sucessão de erros, talvez motivados por pura vaidade, acabou ajudando ainda mais o movimento de ocupação. E para a queda de Mulholland. Tudo começou numa quinta-feira. A magnificência da Reitoria, em vez do diálogo, optou pela violência “legítima” do Estado, determinando o esvaziamento do prédio e o ajuizamento de uma ação de reintegração de posse na Justiça Federal.

A ação foi célere. Às 11h33 da manhã do dia seguinte, já estava na justiça. Na mesma sexta-feira, a juíza Cristiane Pederzolli Rentsch autorizou o uso da força caso a desocupação não ocorresse em uma hora. Com a tinta da sua caneta também determinou que, para cada hora de atraso, uma multa de 5 mil reais.

Não sabia a magistrada, muito menos o reitor, a confusão política que iria se suceder.

A ordem não seria cumprida em caráter imediato, como desejado, porque não havia efetivo disponível para ser mobilizado. O Oficial de Justiça responsável por comunicar a ordem fez o que podia. Foi à Reitoria e intimou os ocupantes na pessoa do então estudante Fábio Félix. Ele e seus companheiros não se viraram nos 30. Às 15h25, não havendo sucesso em sua missão, foi o oficial, mandado debaixo do braço, bater na porta da Polícia Federal. Uma nova porta na cara. Não há agentes disponíveis, ouviu.

O Oficial voltou de mãos abanando. No mesmo dia, já depois do expediente, a Excelentíssima Juíza, imbuída da autoridade de um Poder da República, determinou a intimação pessoal do comandante-geral da Polícia Militar. Queria porque queria ver sua ordem cumprida. E precisava de policiais para a operação.

Enquanto isso, os estudantes, preocupados com o risco de serem vítimas do uso da força policial, convocaram uma assembleia para a segunda-feira seguinte. A ocupação, e a assembleia, tornaram-se o assunto do fim de semana na imprensa local e nacional, com jornalistas vivendo a expectativa de a ordem ser cumprida a qualquer momento.

José Roberto Arruda, conhecedor da opinião pública que já pendia favoravelmente para o lado dos estudantes, decidiu não se meter. Afinal, havia riscos altos. Como o prédio da reitoria tem lajes sem parapeitos, logo avaliou-se que usar a força naquela circunstância colocaria em risco a vida dos envolvidos.

Arruda bateu o pé. E determinou que a PM nada fizesse enquanto o Ministério da Justiça não formalizasse o pedido de apoio à Polícia Federal (a quem cabia cumprir a ordem). No sábado, a magistrada mandou intimar Márcio Thomaz Bastos, para que ele requisitasse a Polícia Militar. Foi quando o ministro sentiu-se ofendido por ser visitado, durante o churrasco com amigos, por um Oficial de Justiça. Não fez, consequentemente, nada além do que era obrigado a fazer. Despachou o emissário da juíza, que mais uma vez se viu nu com as mãos nos bolsos. E sem direito a um naco de picanha ou caneca de chopp gelado.

Enquanto a juíza articulava, os estudantes se mobilizavam. No mesmo sábado, às 12h20, os alunos, representados pelo advogado Ariel Foina, entraram com um recurso no Tribunal Regional Federal. A decisão da então presidente do TRF, hoje ministra do STJ, Assussete Magalhães, só saiu 11 horas depois. O despacho foi uma vitória para os alunos. A ordem de desocupação deveria ser cumprida, mas sem uso de força.

A segunda-feira, 7, chegou com a UnB parecendo um formigueiro. O ‘Grupo dos 100’ transformara-se em centenas, milhares, para a assembleia. A reitoria, que dormiu o domingo com pouco mais de 50 estudantes ocupando uma de suas salas, amanheceu apinhada de gente ocupando todo o prédio.

Nesse mesmo dia 7, às 10 da manhã, enquanto os estudantes terminavam de tomar o prédio da reitoria, um grupo deles se reunia com o Conselho Federal da OAB, representado por seu presidente Cezar Brito, e pelo então vice-presidente da OAB no Distrito Federal, o pacifista, bombeiro de apagar incêndios perigosos, Ibaneis Rocha. A ideia era encontrar uma forma de fazer a desocupação sem traumas, de forma pacífica como determinara a presidente do TRF.

Sucederam-se, então, dezenas de reuniões diárias, muitas delas com as presenças de delegados da Polícia Federal.

Não tivesse Timothy Mulholland ordenado o uso da força para resolver a questão, provavelmente a história seria outra. O processo de negociação para a saída pacífica acabou sendo mais longo. E o reitor não se sustentou tempo suficiente para ver essa saída. A multa de 5 mil por hora, quando chegou a um milhão de reais, foi comemorada com festa, com direito a milho verde cozido servido aos participantes do movimento e seus ‘convidados’.

Timothy Mulholland enfim caiu. E os estudantes, vitoriosos, baixaram as armas. A Lixeira de Ouro hoje é sucata, e o reitor que virou professor, foi demitido da UnB seis anos depois. Recorreu da decisão, mas ficou nisso mesmo.

Ibaneis, cirúrgico, pragmático, visionário, manteve acesa a chama de negociador pacifista que o levou ao Palácio do Buriti em 2018, com direito a repeteco em 2022. Fábio Félix, ativista das causas populares, tem seu gabinete como deputado distrital. Márcio Thomaz Bastos já não está entre nós para dizer o que fez com a suculenta carne do churrasco.

Em 2026, acredita-se, o governador e o deputado podem ter uma nova rodada de conversa. Como se entenderam no passado, podem selar um novo acordo no futuro. Independente do que aconteça, é certo que, caso venha a ocupar o Buriti, o nome forte do Psol em Brasília jamais, sob quaisquer circunstâncias, mandará que a Polícia Militar use o cassetete para arrebentar e prender quem quer que seja. Em especial, aqueles que estão com razão.

Quanto a UnB, que suas salas de aula continuem a germinar sementes de gênios nas mais diferentes áreas do conhecimento.

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