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Generosidade constrangedora

Ajuda para Notre Dame deixa pobre de pires na mão

Publicado

Autor/Imagem:
Marc Arnoldi

Notre Dame de Paris, uma das mais belas catedrais góticas ainda existentes em sua arquitetura original, comoveu a França e o mundo quando perdeu seu conjunto de vigas de madeira do século XIII num espetacular incêndio na segunda-feira 15 de abril. O fogo se alastrou rapidamente, devorando também a flecha, também de madeira, de 1859, cujos restos se espatifaram no chão do monumento mais visitado da Europa, atraindo anualmente cerca de 14 milhões de turistas. Visitantes que, felizmente, não estavam mais deambulando na catedral, da qual as portas fecham às 18 horas. O incêndio se iniciou uma hora depois.

A comoção que varreu primeiramente as redes sociais é um alento para quem duvidava que, no império dos memes, as velhas pedras poderiam captar a atenção e a emoção dos que costumam mais vibrar com artistas populares ou séries de TV. Notre Dame também tem seu lado romanesco e cinematográfico graças a Victor Hugo e seu Quasimodo, habitante corcunda do campanário, apaixonado pela bela cigana Esmeralda que encanta a todos com suas danças.

As impressionantes chamas compartilhadas ao vivo no mundo inteiro faziam prever o pior. Que não ocorreu. Nem a estrutura do edifício, nem os “tesouros” guardados nesta Nossa Senhora parisiense foram destruídos. Até o galo de bronze que culminava na flecha consumida foi encontrado. Tostado, mas reconhecível.

Enquanto os bombeiros ainda agiam no coração de Paris, outros corações já se abriam. Ou mais exatamente, carteiras. Em poucas horas, grandes famílias e grandes empresas anunciaram doações milionárias para a reconstrução da catedral. O bilhão de euros (cerca de R$ 4,4 bilhões) foi atingido em dois dias. Uma generosidade que honra os interessados, mas que logo começou a ser debatida. Até mesmo questionada. Num dos poucos países que cortou a cabeça de seu rei, a política sempre impregna a sociedade. E o espírito sempre crítico do francês logo fez o paralelo entre a chuva de milhões tão facilmente prometida pelas maiores fortunas francesas, e o movimento dos coletes amarelos, que ocupa as ruas todo sábado desde novembro do ano passado.

Nunca a desigualdade ficou tão visível. Enquanto Bernard Arnault, CEO do grupo de luxo LVMH prometia um cheque de 200 milhões de euros, há inúmeros relatos de famílias a quem faltam 200 euros por mês para até alimentar-se razoavelmente. A diferença é brutal. A sociedade brasileira se acostumou com essas disparidades. Num país onde o teto do servidor público corresponde a quarenta salários-mínimos, as disparidades são aceitas historicamente. Na Europa, não. É chocante. E cada vez mais, já que o pós-crise de 2008 viu a concentração de riqueza aumentar na faixa mais elevada até níveis inéditos, enquanto as camadas mais baixas estagnaram.

O maior sino de Notre Dame de Paris, o bourdon Emmanuel, de mais de 13 toneladas, nem chamuscado foi. Já seu xará, Presidente da República há quase dois anos, teve seus planos perturbados. No dia do incêndio, estava prevista uma alocução de Emmanuel Macron na TV, ao vivo. O presidente “de esquerda e de direita”, segundo seu lema da campanha de 2017, pretendia anunciar medidas em resposta ao “Grande Debate Nacional”. Durante dois meses, em reuniões e participações pela internet, os franceses puderam expressar suas ideias e suas demandas sobre os problemas do país. Política fiscal, social, presença do Estado e meio-ambiente foram os assuntos campeões.

Agora vem a parte mais espinhosa para o presidente renovador: saber captar os anseios e transformá-los em medidas. Uma das mais emblemáticas gira em torno do imposto sobre grandes fortunas. Foi suprimido por Macron que chegou ao poder, com o argumento que os ricos são a locomotiva da economia. E que o dinheiro dos mais abastecidos formaria um tipo de rio ao contrário, irrigando os bolsos até dos mais pobres.

A intervenção na TV e o anúncio das medidas foram adiados. E Emmanuel Macron agora terá que integrar um novo dado às suas explicações: dinheiro há. E até mesmo sobrando. Se Nossa Senhora é certamente merecedora, por que não seus devotos?

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