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A formatura

Aparecida, Célia e Elvira ganham diploma da universidade da vida

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Francisco Filipino

O velho sobrado senhorial encontrava-se todo enfeitado para sediar o grande evento daquela noite: a formatura. Colchas coloridas haviam sido repousadas nas janelas, lanterninhas chinesas de papel foram caprichosamente preparadas, cada uma com um toquinho de vela dentro, prometendo uma feérica iluminação amarelada, meio à penumbra, quando fossem acesas mais tarde. O assoalho fora intensamente encerado e luzia, de quando em quando aparecido sob tapetes rotos mas dignamente limpos. Comidas e bebidas esperavam os convidados, compondo a decoração de comprida mesa.

Guirlandas, enfeites de papel recortado e flores campestres embelezavam o grande salão principal ao qual se acessava pela rangente escada, iniciada sob o arco ogival da majestosa porta de boca para a rua, a qual cerrava-se em duas folhas de pesado jacarandá. Em minutos, o poeta tranquilo e de coração leve cruzaria aquela porta e subiria pelas escadas objetivando cumprir a elevada missão que a dona daquela casa lhe incumbira.

Tudo era alegria e expectativa mas, estranhamente, ao mesmo tempo, hesitação e lágrima. Havia uma vida que se podia resumir em antes e depois daquela festividade. Tantos sonhos que poderiam ter sido e não foram. Tanta vida que poderia ser vivida e ficara só na promessa. O movimento em direção daquele caminho, por vezes – muitas vezes – sem volta, era significativa ruptura para as formandas do dia. Desligavam-se das convenções sociais, da família, de suas próprias histórias pessoais.

Eram três as formandas, das quais resumirei a história:

Aparecida, 19 anos, chegara de distante cidade capixaba para trabalhar em casa de uma família. O filho mais velho da rica viúva dona da casa interessara-se por ela. Aparecida ficou grávida e, quando não pôde mais esconder a barriga, a patroa expulsou-a do lar. A jovem, sem qualquer apoio, vagou pela cidade até ser recolhida num convento de freiras. A criança nasceu mas, em poucas horas, morreu em seus braços. Desesperada de dor e solidão, entregou-se novamente a vagar por ruas hostis e desconhecidas até que, por intermédio de amizades que fizera, conheceu acolhimento e proteção no sobrado que, agora, sediaria aquela grave cerimônia.

Célia, 23 anos, voltara para casa após, noviça, resolver não mais concluir os votos que a ligariam para sempre à ordem religiosa a que a madrasta lhe havia entregado. Contrariada com a volta da enteada, a quem a madrasta nunca suportara a concorrência nos afetos do marido com as filhas das segundas núpcias, a odiosa mulher envenenara a opinião do pai sobre a jovem que, difamada e expulsa da rica fazenda onde nascera, foi levada pela própria família para sua nova casa no sobrado.

Elvira, 26 anos, imigrara órfã para o Brasil, onde casara com um patrício. Engravidou e, durante a gestação, o marido acidentou-se na pedreira em que trabalhava, morrendo no curso de três dias. Nascida a criança, Elvira viu-se em extrema necessidade, sem família e sem trabalho. Colocou, de madrugada, a filhinha na roda dos enjeitados. Com remorso e tristeza, tentou dar cabo da vida jogando-se na linha do trem que, no entanto, estava desativada, indo tratar-se das escoriações na Santa Casa, de onde, ao sair, foi em demanda de moradia e ocupação no sobrado.

Madame Zuleyka, velha e experimentada nos meandros da existência, por décadas exercera o mesmo ofício para o qual direcionava suas novas protegidas, desde que ela mesma chegara da Europa natal sem perspectiva, no vasto Brasil da virada de 1899 para 1900. Trinta anos depois, já dona da casa, tomava como maternal missão acolher aquelas mulheres às quais a sociedade, cheia de preconceitos, fechara os caminhos.

Aquelas novas moças vivenciariam verdadeiro rito de passagem e, em homenagem a elas, Madame Zuleyka promovia, como outras inúmeras vezes, aquela pantomima de formatura à qual não faltariam festa e discursos, este a cargo do conhecido poeta local que fora chamado a ser paraninfo.

Em sua preleção, o poeta exaltou a força e a coragem daquelas mulheres que se mostravam grandes e arrojadas para encarar quaisquer percalços. Iam, verdadeiramente, colar grau.

Todas elas terminariam aquela noite ainda com muito a aprender, mas já devidamente formadas na universidade da vida.

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