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Os sobreviventes

Baixo Rio Branco, Roraima. Onde o Brasil é esquecido

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Autor/Imagem:
Giovanni Seabra (Texto) e Cláudia Neu (Fotos)

Pronto, chegamos! O relógio apontava 6:30 da manhã do sábado, 25 de maio, quando Raimundinho, comandante do barco Dom Alfredon, anunciava a chegada ao fim do mundo. Ou melhor, o começo. Pois, os limites planetários beiram Ushuaia, na Terra do Fogo, extremo sul da América do Sul. Xixuaú, por sua vez, o lugar ribeirinho onde amarramos a embarcação, é apenas um ponto situado às margens do rio Jauaperi, cercado de águas e florestas, nas fronteiras meridionais do estado de Roraima com o noroeste do estado do Amazonas.

No dia anterior havíamos percorrido três lugarejos também espremidos entre o rio e a selva. Cada um com suas peculiaridades amazônicas. Um deles, Bela Vista, porque a vista é bela, despertou nossa curiosidade por vários motivos. Primeiro a limpeza dos quintais e das 12 casas, todas pertencendo à mesma família. O chefe do clã e pastor, também dono da única mercearia, estava ausente no momento da visita. Ali, os visitantes são tão raros, que logo apareceu uma menina de cinco anos, de vestido e cabelo trançado, perguntando, sorridente, onde deveria tomar a vacina. Tão logo soube que era uma equipe de professores, aumentou o sorriso e a alegria estampada no rosto.

Em uma das casas sobre palafitas, assim como as demais residências, uma paca, órfã de pai e mãe, dividia um dos quartos com uma das meninas. Havia um mês e meio que a comunidade estava imersa no escuro da floresta porque o gerador a diesel estava quebrado. No mundo das trevas do Baixo Rio Branco os mortos são sepultados na selva, ou transportados para outro povoado à jusante onde há cemitérios.

O barco transporta uma equipe de geógrafos da 2ª expedição científica da Universidade Federal de Roraima a uma das mais remotas regiões da Amazônia: o Baixo Rio Branco. Mas, desta vez, subimos até o alto curso do rio Jauaperi, afluente do Negro, após singrarmos rios, igarapés, lagos, furos e paranãs. “Fazer uma viagem como esta é ter o privilégio de conhecer um Brasil que poucos conhecem”, na reflexão do fotógrafo Roberto Caleffi.

A comunidade de Xixuaú, com 60 habitantes, entre crianças jovens, adultos e idosos estava desfalcada, como as outras visitadas no dia anterior. Motivo: era sábado, dia de festa de Santa Rita de Cássia, padroeira de Moura, lugarejo e entreposto localizado na margem direita do rio Negro, na rota Manaus-Barcelos. Para lá seguiram dezenas de embarcações do Baixo Rio Branco em busca mais do profano e menos do religioso. No evento estão reunidas equipes de futebol masculinas e femininas, bingo, tiro ao alvo, pau de sebo, desfiles das “misses” e bebida, muita bebida.

O Bioma Amazônico possui uma riqueza inestimável nos milhares de ecossistemas reunidos, que guardam a biodiversidade e a maior reserva hídrica da Terra. Uns dizem que a Amazônia é patrimônio mundial. Outros afirmam que a Hiléia pertence aos brasileiros. Porém, há controvérsias.

Na pequenina Xixuaú, como inúmeros outros lugarejos amazônicos, empoderamento dos nativos é coisa que não existe. No povoado, o poder é compartilhado entre dois estrangeiros, um escocês e uma espanhola. E a eles, quase como súditos, prestam serviços os residentes. No coração da “terra de ninguém”, resistem como podem os chamados “povos da floresta”, as esquecidas comunidades ribeirinhas, formadas de índios, caboclos e aventureiros.

A Hiléia Amazônica é um mundo sem fim, cuja riqueza vegetal, animal, mineral e hídrico é impossível ser dimensionada. Na reflexão de Madalena Cavalcante, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Rondônia, “cada parte da Amazônia que eu conheço, percebo que a desconheço e sempre me deslumbra a maneira como o ribeirinho descomplica a vida”. Todavia, a Amazônia brasileira, com seus 5.000.000 km², está entregue às baratas desde tempos imemoriais. Em outras palavras, é um imenso covil dos exploradores madeireiros, mineradores, pescadores e grandes latifundiários, e, entre estes, os grileiros contumazes. Ainda assim, “em todas as comunidades ribeirinhas que visitamos, percebi que as pessoas são alegres e vibrantes como a natureza da floresta e do rio”, conforme observou a consultora socioambiental Claudia Neu.

O Projeto Baixo Rio Branco: potencialidades e vivências, da Universidade Federal de Roraima, com apoio do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica na Amazônia, mantém em curso a segunda expedição exploratória, com o objetivo de conhecer e vivenciar experiências, junto aos povos ancestrais e populações tradicionais do Baixo Rio Branco, na porção sul do estado de Roraima. Para Antônio Veras, coordenador do Projeto, “as comunidades ribeirinhas revelam uma Amazônia rica em saberes e viveres culturais que precisam ser preservadas”. Mas, a preservação dos bens naturais e do patrimônio cultural é quase uma utopia no Baixo Rio Branco.

A Região do Baixo Rio Branco é a mais isolada do estado de Roraima, onde foram criadas cinco unidades de conservação: o Parque Nacional Viruá, a Reserva Ecológica do Niquiá, a Floresta Nacional Anauá, a Área de Proteção Ambiental do Baixo Rio Branco e a Reserva Extrativista do Baixo Rio Branco – Jauaperi. O entorno das unidades de conservação é habitado pelos grupos indígenas Yanomami e Waimiri-Atroari, ao passo que no interior e bordas das áreas protegidas vivem as populações tradicionais ribeirinhas, cujo acesso, na maioria das vezes, somente é possível pelo ar ou pela água. Por via fluvial, centenas de quilômetros de águas fluem diante da ínfima fiscalização e policiamento. Neste “paraíso das águas” impera a lei dos mais fortes.

É a lei da selva.

Distante das políticas públicas em nível federal, estadual e municipal, porque a região tem poucos votos, na expressão de uma liderança política, o Baixo Rio Branco jaz no abandono e no esquecimento, dependendo quase tão somente das sinergias e arranjos produtivos locais. Nos períodos eleitorais os políticos surgem como do nada, para depois desaparecerem feito fumaça.

Santa Maria do Boiaçu, um microcentro regional, com 700 moradores, onde falta quase tudo, é a mais bem servida de equipamentos e serviços. No porto, não existe um simples trapiche para atracamento das embarcações. Os barcos estacionam amarrados uns aos outros ou nas toras flutuantes para este fim. No lugar do píer uma grande voçoroca ameaça engolir a rampa de acesso ao povoado. E o povoado.

Dois médicos “sem fronteiras”, um peruano e outro cubano, se reversam a cada quinze dias, para receitar remédios para pressão, diabetes, soro antiofídico, e acompanhar os partos. Ginecologista e obstetra nem pensar. O pré-natal e os partos das ribeirinhas estão aos cuidados das parteiras no restante das comunidades ribeirinhas.

No logradouro principal, situado entre o hospital e a escola municipal, uma pilha de postes parcialmente cobertos pelo matagal serve como assentos para os residentes captarem os tênues sinais da internet livre. Como as cobras rastejam livremente pelas ruas, as lanternas são equipamentos indispensáveis aos moradores. Sem falar nas onças, que, de quando em quando, devoram os cachorros mais atrevidos.

Pois bem. Nessa pequena localidade e nos povoados menores das cercanias ocorre o fenômeno da invasão dos índios Yanomami.

A migração dos indígenas para os povoados e sítios do Baixo Rio Branco é decorrência dos cortes nos recursos federais na Fundação Nacional do Índio – Funai e da pressão dos garimpeiros no território indígena, sobretudo nas regiões do alto e baixo rio Catrimani.

Aproveitando a correnteza das enchentes de abril a agosto, os índios descem remando durante dias até um lugar onde possam ser acolhidos. São famílias formadas de adultos e crianças, fazendo supor que os jovens e velhos permanecem nas aldeias, garantindo a posse do lugar de origem. Poucos falam a língua portuguesa e a maioria somente o idioma nativo. Os indígenas se instalam nas casas de farinha, galpões, casas abandonadas, sítios e acampamentos improvisados na floresta próxima aos povoados. As atividades de labuta mais comuns dos índios são a limpeza dos roçados, dos sítios, dos quintais e a derrubada e queima da mata para dar lugar às pastagens, por encomenda do “patrão”. Fato corriqueiro é encontrar os indígenas, sós ou em grupos, perambulando pelas ruas dos povoados mendigando roupas e alimentos.

A primeira viagem exploratória da UFRR ocorreu em outubro do ano passado, quando sete pesquisadores, a bordo de dois barcos pequenos e frágeis, apelidados “voadeiras”, percorreram a região durante 11 dias, navegando por 1100 km de rios, lagos e igarapés. Na oportunidade, visitamos oito comunidades ribeirinhas, umas dependendo das outras e todas subservientes aos grandes centros regionais, mesorregionais e microrregionais, de Boa Vista, Caracaraí e Santa Maria do Boiaçu (Roraima); Manaus, Barcelos, Novo Airão e Moura (Amazonas). A minúscula equipe formada por três pesquisadores, os geógrafos Antônio Veras, Giovanni Seabra e Sandra Lauriano (Instituto de Geociências / Programa de Pós Graduação em Geografia da UFRR); o jornalista Éder Rodrigues, o fotógrafo Roberto Caleffi, os auxiliares técnicos Mário e Ruben Caleffi e o “piloteiro” Toco, conseguiram alcançar resultados bastante satisfatórios, mesmo dormindo nas praias fluviais, embaixo das árvores, galpões e escolas, e sujeitos às picadas dos “carapanãs” e, pasmem, ataques de morcegos.

Três membros da equipe foram mordidos pelos hematófagos em Sacaí, enquanto dormiam nas redes penduradas numa marcenaria. Depois descobrimos que os morcegos haviam “batizado” quase todos os moradores de Sacaí. Fato absolutamente normal.

A segunda expedição, em andamento, programada para o período de 15 a 31 de maio do corrente ano visitou 16 vilarejos ribeirinhos. Integram a equipe agora ampliada, além dos expedicionários da viagem anterior, um pesquisador da Universidade Federal de Roraima, três pesquisadores da Universidade de Rondônia, uma gestora ambiental e uma consultora socioambiental. Somem-se a estes seis tripulantes da embarcação, totalizando dezoito navegantes, lembrando, de longe, um “big brother” flutuante.

Durante as duas viagens, aplicamos dezenas de questionários e entrevistas formais e informais com os comunitários, servindo de suporte para a elaboração do primeiro diagnóstico, ainda insipiente, e a ser publicado, registrando como vivem, ou sobrevivem os “Esquecidos do Baixo Rio Branco”. Esquecidos, vale salientar, porque as ações dos municípios não chegam, os projetos do governo do estado não atingem e os programas federais não alcançam. Registros fotográficos e filmagens agregaram realismo aos cenários amazônicos físicos e humanos.

Não fosse a ausência do atendimento médico odontológico em quase todas as comunidades visitadas, agravado pelo ensino fundamental estadual e municipal inexistente ou de péssima qualidade, podemos assegurar que os micronúcleos de povoamento ribeirinho são econômica e socialmente sustentáveis. Os medicamentos são feitos das raízes, cascas, folhas e flores das plantas nativas, e o alimento abundante provém do rio, da floresta e dos roçados. Mesmo convivendo com os períodos de seca, quando os rios se reduzem a filetes de água contornando extensos areais, ou no inverno, período em que as chuvas torrenciais provocam grandes enchentes alagando os vilarejos, os povos ribeirinhos permanecem inabaláveis. Pois, para todo e qualquer desafio sempre encontram uma solução.

Na concepção do professor da Universidade de São Paulo, o geógrafo Wagner Ribeiro, “o mais importante nessa expedição é descobrir que moram pessoas nos lugares mais remotos da Amazônia e que precisam de apoio para manter o seu modo de vida sustentável”. Por serem assim, estão entre os povos mais felizes do mundo, porque as brincadeiras de crianças persistem e os trabalhos comunitários ocupam os membros das famílias de todas as idades. Noventa por cento dos entrevistados preferem viver onde estão, ao invés de irem morar em outra localidade ou cidade, pois receiam não encontrar trabalho, tampouco lugar para morar, ou o que comer. Segundo o “seu Careca” de Santa Maria Velha, “aqui não tem supermercado, mas tem o peixe, tem o açaí, tem a castanha, tem a farinha, tem a caça, tem tudo que a gente precisa pra viver. Além do mais, a casa e o barco são feitos com a madeira que a floresta oferece, e de graça”.

Terminado o trabalho em Xixuaú, a 2ª expedição ao Baixo Rio Branco inicia o lento regresso com destino a Caracaraí. São mais sete dias subindo o rio Branco. Devemos acrescentar outros 140 km trafegando na rodovia 174 até o destino final, Boa Vista. Próxima parada Moura, porque é dia da procissão. Ave Santa Rita de Cássia!

** Matéria alteradas às 16h09 para correções apontadas por leitores.

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