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Turma do poire

Bolsonaro e Collor usam Ulysses de olho em 2022

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo*

Nos velhos tempos de repórter de política no Congresso Nacional, cansei de ouvir do inesquecível deputado Ulysses Guimarães a locução “a política é a arte do possível”. Adaptada do nobre, diplomata e político prussiano Otto Von Bismarck (viveu no século XIX), a expressão entrou para os anais da Câmara e fincou-se em minha memória como algo que, pela recorrência dos políticos de ontem e de hoje, jamais se apagará. Embora esquecido da maioria, o currículo de Ulysses é de fazer inveja àqueles que, em lugar de negociação e de bastidor, preferem os generais sem currículo técnico, o emparedamento, os berros, as armas e a pólvora como formas de convencimento.

Três vezes presidente da Câmara e presidente da Assembleia Nacional Constituinte, o Senhor Diretas Já foi um dos principais opositores à ditadura militar e autor da lei que transformou o Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) obrigatório para os quadros da advocacia. Entre um e outro café, entremeado pelo poire (destilado de pera), o deputado paulista foi decisivo, em 1992, no impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Foi ele quem negociou – e venceu – a proposta de votação aberta para o processo que culminou com o afastamento definitivo do hoje senador por Alagoas. Pois bem, quase 30 anos após sua morte, a máxima do mestre Ulysses volta a dar o ar da graça em um dos mais importantes palcos da Praça dos Três Poderes: a Presidência da República.

Mesmo sem poire, pelas mãos do atual presidente da Câmara e líder do Centrão, deputado Arthur Lira (PP-AL), o ex-presidente Collor voltou a circular com frequência pelo Palácio do Planalto, de onde foi defenestrado no dia. 29 de dezembro de 1992, quando renunciou e sofreu o impeachment. Derrotado na Câmara por 441 votos favoráveis ao afastamento, 38 contrários, 23 ausências (no Senado o placar foi 76 a 3), Collor perdeu os direitos políticos e voltou ao cenário nacional como senador em 2006. Na próxima eleição, tentará o terceiro mandato seguido no Senado. Não será tarefa das mais fáceis, pois terá como adversário para a única vaga o atual governador do Estado, Renan Filho, cujo pai, por razões oficialmente desconhecidas, está umbilicalmente ligado a Luiz Inácio. Não há dúvida de que, no melhor estilo do Centrão, toma forma um toma lá dá cá com nítida preocupação em 2022.

Ou seja, Collor e Bolsonaro hoje são muito mais do que conselheiro e aconselhado. Presença constante no avião presidencial nas viagens ao Nordeste e até em reuniões da equipe econômica, o ex-presidente fez questão de esquecer os tempos em que Jair Bolsonaro, deputado federal, o denominava por meio de adjetivos nada simpáticos. O mais simplório era “grande mentiroso”. Atualmente, Collor é “um homem que luta pelo interesse do Brasil”. Bajulações à parte, um tem know-how suficiente para se encostar em quem nada entende, mas é considerado mito. O outro promete honestidade, embora saiba pouco de macropolítica. Então, o que os une? A falta de bons modos. Espetaculoso, Collor é recorrente em xingamentos públicos a procuradores da República. E não apenas a membros, mas especificamente a chefes do Ministério Público.

Ex-procuradores-gerais, Roberto Gurgel e Rodrigo Janot já experimentaram do destempero do ex-presidente. A razão? Ele não admite ser investigado ou ter carros de luxo apreendidos. Mês passado, foi ríspido com um “conterrâneo”, o deputado federal Paulão, que insinuou não ser gratuita a “descarada babação de Collor em Bolsonaro”. Raivoso, o atual presidente não permite perguntas ácidas ou fora do script, muito menos as que buscam respostas sobre eventuais desvios dos filhos. Irritado, encerra conversas ou entrevistas ao primeiro sinal de desconforto. Só são aceitos elogios adocicados com leite condensado. A verdade da recíproca é que Bolsonaro também deletou dos arquivos pessoais recentíssima live collorida, na qual o senador faz críticas simultâneas à participação do presidente em protestos antidemocráticos e aos “acordos obscuros” em busca de maioria no Congresso

Relativizando uma amizade que nunca houve, o idiomático “abraço de tamanduá” tem por objetivo as eleições gerais do próximo ano, quando ambos tentarão a reeleição. O presidente aposta em Collor para garantir palanque mais robusto em Alagoas e em parte do Nordeste. Tentando um novo mandato de senador, Collor de Mello jogará todas as fichas no pop star Bolsonaro, que, em terras alagoanas, ainda dispõe de seguidores dispostos a fechar os olhos para as mazelas do país. Melhor dizendo, é calça de veludo para os dois circularem no Mercado de Artesanato da Pajuçara ou desfile de nudez na maravilhosa orla de Maceió, mais especificamente entre a Ponta Verde e Cruz das Almas.

Se vivo fosse, Ulysses Guimarães ditaria para os dois novos amigos um ensinamento budista, cuja síntese é a seguinte: em política, guardar raiva é como segurar um carvão em brasa com a intenção de atirá-lo em alguém. Normalmente quem se queima é o atirador. Talvez a melhor solução fosse um par ou ímpar para saber quem não seria chamuscado. Inquestionavelmente, Otto von Bismark foi prático ao criar a frase imortalizada pelo Senhor Diretas Já. Ocorre que ela foi alterada em meados do século passado por John Kenneth Galbraith, economista, filósofo, escritor e cientista político norte-americano. Para Galbraith, a política não é a arte do possível, na medida em que consiste em escolher entre o desagradável e o desastroso.

Na essência da síntese, a seriedade moral na vida pública é como a pornografia: difícil de definir, mas fácil de se identificar quando se vê. A gente conhece a árvore pelo fruto. Aquela que produz maus frutos não é boa. Não colhemos figos em espinheiros, muito menos cachos de uvas em sarças. Portanto, a boca fala do que está cheio o coração. Toda política é a arte do possível. Contudo, até a arte tem sua ética. Penso nisso e lembro mais uma vez de Ulysses Guimarães. Ao lado de Paulo Brossard, Franco Montoro, Mário Covas e Tancredo Neves, ele liderou memoráveis campanhas pela redemocratização. Para quem não sabe que sua máxima tem sido usada em vão, morreu e seu corpo nunca foi encontrado.

*Wenceslau Araújo é jornalista

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