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O roto e o esfarrapado

Bolsonaro manda Brasil rapidinho pra buraqueira

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior*

Desde criança, uma roupa, um par de sapatos ou brinquedos saídos das lojas eram sinônimos de alegria e de festas intermináveis. Foi assim em todas as minhas primeiras vezes: a fatia de bolo, o refrigerante, o sorvete, as pretendentes, debutar no Maracanã com mais de 180 mil pagantes. Enfim, inesquecíveis primeiras vezes. Daquela? Não tenho lembrança. Estou certo de que eu e o mundo sempre agimos assim quando somos apresentados àquilo que é novidade, ao que ainda tem lacre, não tem vícios. Minha primeira desilusão com o novo ocorreu em 1989, quando Fernando Collor de Mello foi eleito presidente em uma disputa contra Luiz Inácio Lula da Silva, cujo resultado ainda é contestado – e com razão – pela turma do Partido dos Trabalhadores.

O pessoal daquela emissora de televisão sabe do que estou falando. A manipulação foi demasiadamente grosseira e até hoje não houve explicações plausíveis para a edição que definiu o pleito. O retorno financeiro deve ter sido vantajoso. Entretanto, os dividendos continuam sendo cobrados pela turma da esquerda. Curioso é que, não se sabe ao certo porque, os esquerdopatas conquistaram apoio dos direitopatas quando querem crucificar e jogar a TV (não o aparelho) no lixo. Como não tenho nada com isso, defendo sua proposta de isenção, assisto e indico seus telejornais e, de vez em quando, ainda dou uma passada d’olhos em suas telenovelas. Quer queiram ou não, é disparadamente a melhor.

Admitamos que o efeito Collor tenha sido apenas um lapso. Fernando eleito, decidi fazer o caminho inverso bem antes da formação do ministério, do confisco do nosso rico dinheirinho e do besteirol que se seguiu. Comprei um apartamento de dois dormitórios próximo da praia de Cruz das Almas, onde pensei passar os quatro anos de governo. Perdi o pouquinho que sobrou para Zélia Cardoso de Mello, mas felizmente acabei fazendo um bom negócio. Como os quatro anos viraram dois, consegui vender o imóvel com a mesma rapidez que comprei. A razão? Simples. Logo após receber o AP, descobri que seria vizinho da mansão de Paulo César Faria, braço esquerdo e direito e ainda captador de grana ilícita de Collor. Vendi um sonho, mas livrei-me de um pesadelo e de um péssimo adjacente.

A lembrança de Fernando Collor tem motivos óbvios. Esta semana recebi a informação de que o único presidente alagoano que os conterrâneos de bem abominam virou conselheiro formal de Jair Bolsonaro. Minha primeira reação foi de torpor. A segunda? Me desloquei à agência bancária onde mantenho conta e, sem ouvir as ponderações do gerente, saquei os R$ 120 de que dispunha. Enfim, é o que temos: o defenestrado tentando mostrar ao desgovernado o melhor caminho para o país, segundo no ranking de infectados e de mortos pela pandemia, nossa novidade mais nova e com a qual, muito a contragosto, tivemos de nos acostumar. Em outras palavras, o que era um governo novo, de novidades, virou velho, enferrujado em menos de dois anos. O roto tenta mostrar ao esfarrapado o caminho que não soube trilhar.

Como nunca sonhamos com isso, é claro que não cobramos governos acima das expectativas. Já tivemos um que ajeitou a economia, mas, no melhor estilo Rubens Ricupero, costumava varrer para baixo do tapete o que era ruim. Mesmo assim, torcemos por aquele que, na pior das hipóteses, defenda a democracia como um bife acebolado, acompanhado de dois ovos e batatas fritas. Simples assim. Ou seja, não queremos muita coisa. Além da democracia, hoje nos faria muito bem mais empregos, menos divisão, mais diálogo, menos grosseria, mais vacinas, menos politização da Covid-19 e mais decisão no trato da coisa pública. Em outras palavras, torcemos por um presidente e ganhamos um capitão que passa horas, dias, semanas do governo modelando um golpe.

Eventualmente torcer contra aquele outro candidato tinha conotação diferente do desejo ideológico. Tenho certeza de que a maioria dos que se bandearam para os lados do capitão não se imaginava governada por pensamentos ou ideias. Todos queriam – e querem – mudanças viáveis, propostas palpáveis, ações concretas, sem conjecturas intramuros e, principalmente, sem acordos voltados exclusivamente para o prazer pessoal, que hoje responde pelo sinônimo de reeleição a qualquer preço. A Constituição ampara todos que legitimamente buscam um novo mandato. O lógico é que a luta seja igual, que o convencimento do eleitor seja conquistado com as mesmas armas. Só assim o vencedor será respeitado até mesmo por aqueles que o preteriram nas urnas.

Faz tempo essa ladainha de fazer o que jurou rejeitar perdeu a etiqueta de validade. A aproximação do presidente da República com a escola Collor de Mello e com o que de pior existe na política brasileira (o Centrão) nos deixa mais próximos do inferno de Dante, a primeira das três partes da “Divina Comédia”, obra épica de Dante Alighieri. As outras duas são o purgatório e o paraíso, este último, ao que parece, muito distante de nossa realidade. Tudo bem que não possamos – pelo menos não devemos – ter tudo que queremos. Também não temos o direito de tentar adivinhar o que as pessoas pensam a nosso respeito.

O que realmente importa é que não nos importemos com nossas imperfeições. Pensemos na coletividade e, se realmente estivermos incomodados, indaguemos a quantos agradamos e a quantos desagradamos. É o que sugiro seja pensado em relação ao presidente Bolsonaro e seus novos apoiadores. Antecipo as dificuldades que vislumbro em se tratando de um ser humano de difícil trato, que gira em torno da família e que usa o rebanho para amedrontar os que fogem de sua doutrina. Complicado, mas perfeitamente normal para os sensatos, que, como pessoas públicas, deveriam ser avisadas diariamente que, voluntária ou involuntariamente, são obrigadas a expor as duas faces para julgamentos.

É o caso dos parlamentares, ministros de Estado, governadores, prefeitos, representantes do Poder Judiciário e, sobretudo, do presidente da República. Em lugar algum do mundo, essas pessoas são eleitas ou escolhidas por unanimidade. Sendo assim, é natural que sofram oposição. Normalmente a convivência entre eleitor e eleito é longa. Com Jair Bolsonaro lá se vão 30 anos. Pacífico ou de litígios eventuais, esse convívio perde a razão quando deixamos de dosar as emoções ideológicas. É o que ocorre diariamente com Jair Bolsonaro.

Façamos dos acertos políticos um jogo democrático, um jogo da vida. Presidente, a oposição e o mercado têm o direito e o dever de reclamar. Se não o fizerem, passam recibo de que está tudo bem. E sabemos todos, inclusive o senhor, que não está. As cacas são diárias. Como exigir que tenhamos tranquilidade? Respeite nossa intranquilidade, permita que sigamos seu exemplo e nos dê a chance de também nos irritarmos com seus erros. Talvez Vossa Excelência não consiga, pois isso é privilégio dos corajosos. Portanto, una-se com quem quiser, mas não nos deixe acreditar que essas uniões não passam de bacanais políticos. Tenha paciência com nosso choro. Não seja tão insensível. Collor tirou o rico dinheirinho do povo, levando muitos chefes de família ao suicídio. Não aja como cruel genocida, pedindo para que esqueçamos nossos mortos. É demais. Não dá para matar o vírus com tiros. O título de rei do caixão pode lhe tirar numerosos votos. Pense nisso.

*Mathuzalém Junior é jornalista profissional desde 1978

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