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Os atormentados

Bons tempos estão mais próximos do que se imagina

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Autor/Imagem:
Mathuzalém Junior* - Foto de Arquivo

Que saudade dos tempos em que esperávamos o dia das eleições gerais para saudarmos a democracia. Os detalhes eram numerosos, mas todos conseguiam ser expelidos na urina. E não precisa nem de pedido médico. As sequelas das urnas de lona e das cédulas de papel saíam naturalmente no primeiro jato. Os vencedores eram conhecidos dias, semanas e até meses após o encerramento do pleito. Havia bandalheira, eleitores comprados com dentaduras, coronéis interioranos e fajutos eleitos com fartura de votos e muitos, muitos, muitos candidatos mal intencionados. Esses não morrerão jamais.

Alguns conseguiam chegar às câmaras municipais, prefeituras, assembleias legislativas, governos estaduais, Congresso Nacional e até à Presidência da República. Era um país sem sonhos, mal ajambrado, onde alguns mandavam e muitos obedeciam. Podia não ser – e não era – o melhor dos mundos. No entanto, as leis que conseguiam vingar eram respeitadas. Melhor de tudo é que os eleitos governavam, trabalhavam para os que os elegeram. Obviamente que sempre houve – e sempre haverá, infelizmente – aqueles mais afeitos à gatunagem dos cofres públicos. Como diziam, roubavam, mas trabalhavam. Não tinham muito tempo para criar, imaginar ou divulgar despudoramente falsas e rocambolescas teorias da conspiração.

E lembrem que essas teorias, principalmente as eleitorais, não eram utópicas. Pelo contrário. De tão palpáveis, a União – leia-se Justiça Eleitoral – foi obrigada a embrenhar-se em uma longa e vitoriosa empreitada. O resultado são as urnas eletrônicas, maquininhas que, desde 1996, elegem exclusivamente os que têm votos. O tempo da bandalheira está distante. Tão longe que nem lembramos mais das maracutaias inventadas por candidatos e cabos eleitorais para ludibriar o pobre do eleitor. Não apenas o pobre, na medida em que o remediado e o rico também desconheciam o que faziam com seus votos durante o malandreado esquema de abertura e contagem dos sufrágios. A fragilidade do processo era parecida com um prato de mingau fervendo.

A urna eletrônica acabou com as safadezas eleitorais. Impressionante é que hoje querem recuperá-las. Quem? Justamente aquele que já foi várias vezes democraticamente eleito com votos depositados no equipamento. Talvez fosse o caso do pessoal que trabalha contra o sistema de votação brasileiro informar a quem desinformam que, assim como no futebol, no voleibol, na porrinha (ou purrinha) e no cuspe à distância, as eleições, inclusive as presidenciais, têm regras preestabelecidas e aprimoradas a cada partida ou período eleitoral. Elas são claras e não podem ser alteradas conforme a vontade ou ameaça de um dos candidatos e apoiadores que dormem fardados sonhando com o golpe.

Interessante é que as especificações técnicas e políticas são aplicadas para todos os candidatos há 25 anos. Ainda mais interessante é que, de repente, as urnas eletrônicas deixaram de ser uteis para quem delas se beneficiou pelo menos nas últimas sete eleições. Elegeu-se em todas. Sem sofrimento, mas com algum saudosismo, tudo isso me remete aos tempos em que éramos felizes e sabíamos. Apesar do descaramento eleitoral de outrora – o político se mantém -, conseguíamos eleger governantes realmente preocupados com seu povo. Claro que já tivemos líderes que mudaram a cara do país.

Embora corrigíveis, deixaram pegadas inapagáveis. Posso estar enganado, mas é justamente com a disposição de garantir uma nova chance de correção de eventuais erros que pelo menos dois terços do eleitorado votará em outubro. E com as urnas eletrônicas como instrumento de salvaguarda de nossa principal arma contra a tirania: o voto. Vale registrar que, apesar de cansativo e chato, o esperneio faz parte do jogo daqueles que não conseguem assimilar desvantagens em pesquisas, no dia a dia e, sobretudo, nas urnas. É dessa desrespeitosa, acintosa e medíocre necessidade de barafustar que advém a desejada tese do golpe.

Donald Trump usou da mesma estratégia em 2020. Se vale como conforto, os preceitos de lá são os mesmos. Por isso, o então magnata perdeu na urna, na Justiça e nas ruas. Mantida a verborragia demoníaca contra o sistema eleitoral, tudo indica que, por aqui, ocorrerá o mesmo. O resumo da ópera é que a vida também tem diretrizes. É comum o tolo se vingar e descer ao nível de quem o machucou. O sábio ignora, afasta-se e deixa que a lei do retorno resolva o resto. Portanto, considerando que o esperneio é um problema de quem não sabe perder, sigamos a dosagem do silêncio e esperemos a volta dos bons tempos. Eles virão mais cedo do que imaginam os que torcem pela tormenta.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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