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Cannabis medicinal

‘Brasil precisa acabar com o preconceito contra maconha’

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Ricardo Westin/Via Agência Senado - Foto Fernando Frazão

Na avaliação do historiador Jean Marcel Carvalho França, os debates sobre a legalização da Cannabis medicinal têm avançado pouco no Brasil por causa de preconceitos. Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor do livro História da Maconha no Brasil, ele lembra que se construiu no passado a visão negativa da Cannabis como uma droga de pessoas pobres e negras que leva à vadiagem, a transtornos psíquicos e a comportamentos criminosos. Esse estigma impulsionou o proibicionismo e permanece, ainda que cada vez menos, diz França, prejudicando os doentes que precisam das substâncias terapêuticas da erva.

— A maconha ajuda a financiar o crime organizado e está ligada à violência. Nas discussões a serem feitas, é preciso mostrar que se pode, sim, retirar a Cannabis do circuito do crime. Quando há plantio legalizado, controlado e com fins medicinais e científicos, o tráfico perde terreno, e a vida de doentes, médicos e pesquisadores fica mais fácil, afirma o historiador.

No Brasil, não há regulamentação para o plantio da erva e a produção de medicamentos, atividades que não são autorizadas. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) libera a importação controlada de remédios a partir de pedidos de pacientes.

No Senado, onde tramitam projetos de lei que tratam do tema, a Cannabis medicinal divide opiniões. Para o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), “a liberação do plantio significaria uma porta aberta para que o mercado bilionário da maconha recreativa crie tentáculos no Brasil”.

Para o senador Flávio Arns (Podemos-PR), a regulamentação é urgente, para que as pesquisas avancem e os doentes sejam beneficiados. A senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) entende que “o Brasil não pode ir na contramão de 40 países que já legalizaram a Cannabis medicinal”.

Estudos científicos mostram que substâncias da Cannabis amenizam dores, inflamações, náuseas, falta de apetite, descontrole muscular, transtornos psiquiátricos e crises epilépticas. Beneficiam-se dela, por exemplo, pacientes de Parkinson, Alzheimer, esclerose múltipla e depressão. Embora não curem as doenças propriamente ditas, as substâncias aumentam a qualidade de vida das pessoas.

No ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) baixou uma norma estabelecendo que os médicos podem receitar esse tipo de medicamento só para dois tipos de epilepsia e nenhuma outra doença. Diante do protesto de doentes, o CFM decidiu suspender a norma e ouvir sugestões da sociedade até dezembro para redigir uma nova regra. O senador Confúcio Moura (MDB-RO) apoiou o protesto das famílias e a decisão do CFM de reabrir consulta pública.

Leia, a seguir, trecho da entrevista:

 Como o senhor vê a criação de regras a serem seguidas pelos médicos na prescrição da Cannabis terapêutica?

— A regulamentação, no meu entender, é necessária. Neste momento, a sensação é a de que a Cannabis medicinal é uma poção mágica capaz de resolver todos os problemas de saúde. Médicos, inclusive com consultas pela internet, estão receitando a Cannabis para resolver os problemas mais diversos, de dor muscular a insônia. A coisa saiu do controle. É mais ou menos como acontece com os antidepressivos, que vêm sendo receitados a torto e a direito por médicos de qualquer especialidade, até mesmo por ginecologistas.

Imagino que uma ala conservadora da classe médica, ao ver a corda sendo esticada demais para um lado, ficou apavorada e resolveu puxá-la para o outro com força. Há uma tensão, que só será resolvida quando o tema for discutido a fundo.

O problema é que, no Brasil, a discussão geral sobre a Cannabis medicinal não tem sido objetiva e pragmática e não tem avançado muito. Há demasiado achismo e empirismo grosseiro. Faltam estudos sérios sobre o impacto na saúde. Recorre-se a preconceitos, a pensamentos estabelecidos, que são tomados como dados. Isso tudo atrapalha. Ao contrário do Brasil, países como o Canadá e os Estados Unidos fizeram discussões sérias e técnicas antes de liberar, por meio de lei, o uso medicinal da Cannabis.

Por que se recorre a preconceitos? De que forma a história da Cannabis no Brasil ajuda a entender a situação atual?

— Na Colônia e no Império, a maconha era um hábito das classes baixas, incluindo os escravos, enquanto o tabaco era um hábito das classes altas e a aguardente era um hábito generalizado. Por estar restrita às camadas mais pobres, a maconha não virou uma preocupação social relevante. Tanto é assim que se produziu pouca documentação nessa época sobre a Cannabis. Até hoje não sabemos, por exemplo, se ela foi trazida para o Brasil por marinheiros portugueses que haviam passado pela Índia ou por escravos africanos.

No máximo, o que houve na época foi uma ou outra lei local tentando restringir o consumo sob o argumento de que a maconha atrapalhava o rendimento do trabalho dos escravos. Não se tratava de uma questão moral. Esse tipo de lei, contudo, teve pouco efeito prático. No fim do século 19 e no início do século 20, os chamados cigarros índios, contra a asma, eram vendidos livremente em farmácias, e a Cannabis in natura era oferecida em feiras e herbanários.

Fazia parte da cultura popular o seu consumo, inclusive na forma de chá, para aliviar dores, ajudar no sono, acalmar os nervos etc. Idosos cultivavam a planta no quintal de casa e exaltavam suas virtudes digestivas.

Quando a Cannabis se transformou em problema?

— A preocupação vem das décadas iniciais da República, quando surgiu o medo de que os hábitos dos grupos pobres, em especial dos afrodescendentes, subissem na pirâmide social, se disseminassem e “degenerassem” as classes médias e altas. A elite fez, então, um enorme esforço para impedir que a maconha se transformasse num “vício elegante”.

Psiquiatras, pedagogos, juristas e autoridades policiais da Primeira República deram início a uma campanha contra a Cannabis, relacionando-a à vadiagem, à marginalidade, à violência e até a perturbações psíquicas.

O problema é que os estudos que inspiraram tais juízos eram muito frágeis. As pesquisas eram feitas, por exemplo, em presídios. Quando se consideram apenas prisioneiros, é óbvio que necessariamente se aponta uma conexão entre a maconha e a criminalidade. Os estudos não abrangiam um universo muito amplo. Era tudo muito impreciso, mas era o que se tinha à mão.

Foi assim, sem que se cobrassem maiores explicações ou demonstrações, que o estigma da maconha surgiu e se instalou no imaginário popular. O que era hábito gradativamente virou vício.

A preocupação com a maconha não era internacional?

— No início do século 20, a droga que gerava preocupação era o ópio, em especial na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos, países que clamavam por uma legislação internacional para reprimir o consumo e o tráfico. Numa conferência da Liga das Nações sobre o tema, o Egito argumentou que o haxixe, um derivado da Cannabis, deveria ser incluído nas discussões, já que esse era o real problema em seu território. A ideia ganhou o imediato apoio do Brasil e dos Estados Unidos e foi aprovada. Foi só então que a Cannabis se tornou uma questão internacional.

Em 1921, antes da conferência, um decreto assinado pelo presidente Epitácio Pessoa sobre “drogas venenosas” não incluiu a maconha. Em 1932, depois da conferência, Getúlio Vargas baixou um decreto enquadrando a Cannabis como “substância tóxica entorpecente”. Até mesmo o uso da fibra do cânhamo na fabricação de tecidos e cordas foi banido. Aí teve início a proibição sistemática.

A campanha da primeira metade do século 20 contra a Cannabis teve sucesso?

— Sim. Por um bom tempo, a Cannabis se manteve como um vício das classes baixas do Brasil, restrita às periferias, favelas e zonas portuárias, onde continuou sendo corriqueira, fazendo parte do dia a dia das pessoas. A campanha conseguiu criar nas classes mais altas uma aversão à maconha. Isso, inclusive, ajudou a esvaziar as pesquisas sobre o potencial terapêutico da Cannabis.

A maconha só passou a ser consumida pelas classes médias e altas nos anos 1960, com a chegada da contracultura e do movimento hippie ao Brasil. Não foi a partir das classes baixas que a Cannabis se disseminou, mas, sim, a partir da influência dos jovens europeus e norte-americanos. O sentido da maconha passou a ser outro. Os jovens começaram a consumi-la para ter uma “iluminação”, diferentemente dos pobres, que, como sugeria Gilberto Freyre, só buscavam descansar e relaxar depois de um dia duro de trabalho.

Logo adotou-se o tom alarmista de que a juventude estava sendo consumida pela maconha. A imagem do maconheiro gerava pânico nas famílias, nas escolas e nas autoridades. Naqueles tempos da Guerra Fria, dizia-se que a droga era parte de um complô mundial do comunismo para cooptar mais facilmente os jovens. Ao mesmo tempo, a esquerda argumentava que a maconha era um instrumento de alienação burguesa que impedia a juventude de enxergar os conflitos sociais.

Nos anos 1970, porém, a maconha passou a ter a concorrência da cocaína, que produz impactos muito mais significativos sobre os indivíduos que a consomem e sobre a sociedade. A cocaína trouxe consigo a violência em larga escala e enormes quantidades de dinheiro, dando uma nova dimensão ao narcotráfico e à criminalidade. Com o passar do tempo, por causa da cocaína, o estigma da maconha perdeu força, pondo em questão os supostos impactos do seu consumo sobre a saúde física e mental dos indivíduos.

O estigma da Cannabis é menor hoje do que era no passado?

— Há, sem dúvida, uma tolerância bem maior. Pessoas das classes médias e altas convivem diariamente com gente do mesmo espectro social usuária de maconha e percebem que aquela relação obrigatória entre Cannabis, vadiagem, marginalidade, violência e perturbações psíquicas não corresponde à realidade. Muitos atletas defendem o uso de derivados da Cannabis para combater dores musculares.

Enfim, a imagem atual do usuário de maconha não é a antiga imagem do maconheiro, do jovem delinquente que entra no mundo do crime para sustentar o seu vício. Há, naturalmente, reminiscências disso, mas cada vez menos.

É interessante notar que, enquanto a maconha esteve restrita às classes baixas, vigorou a repressão e que, assim que o seu consumo ganhou as classes médias e altas, gradativamente surgiu um discurso que apela à tolerância.

De todo modo, a maconha é uma droga ilegal e seu tráfico envolve criminosos…

— Sem dúvida. A maconha ajuda a financiar o crime organizado e está ligada à violência. Nas discussões a serem feitas, é preciso mostrar que se pode, sim, retirar a Cannabis do circuito do crime. Quando há plantio legalizado, controlado e com fins medicinais e científicos, o tráfico perde terreno. Existem muitos pacientes que precisam da Cannabis em seus tratamentos e que, dadas as restrições atuais no Brasil, acabam recorrendo ao tráfico. Com a legalização, a vida de doentes, médicos e pesquisadores fica mais fácil.

Mas há algo que precisa ficar claro para todos: a legalização, mesmo a do uso recreativo, é um remédio ineficaz para acabar com a criminalidade entre os jovens e o seu encarceramento. É pouco provável que os envolvidos no comércio ilegal migrem para o legal. Isso não vai acontecer.

É uma ilusão acreditar que a legalização da Cannabis resolveria os problemas nacionais relativos à violência. Até mesmo porque, dentro do narcotráfico, a maconha ocupa um papel menor, por exigir grandes quantidades da planta, propiciar lucros bem menores do que os da cocaína e as drogas sintéticas e, ainda, enfrentar a concorrência dos plantadores de chácara e quintal. Assim como a Cannabis não é uma poção mágica capaz de curar um número desmedido de doenças, a legalização tampouco é a solução para a criminalidade no Brasil.

Por que o debate sobre a Cannabis medicinal avança pouco no Brasil em comparação com outros países?

— Faltam à sociedade tanto o interesse quanto subsídios para uma discussão mais detida.

Os jargões não ajudam muito: a “guerra às drogas” fracassou ou a “descriminalização das drogas” é a única saída. “Drogas” é um termo que pode envolver tanto a maconha quanto a cocaína e o crack, por exemplo. Quando se fala em “descriminalização das drogas”, as pessoas podem imaginar que se trata de liberar tudo e que as cidades brasileiras vão se transformar em uma Seattle, com aquelas ruas de drogados, ou que o Brasil vai virar um narcoestado. Quanto à “guerra às drogas”, termo cunhado nos Estados Unidos, o seu alvo é a cocaína, e ela está longe de ter fracassado. A fala genérica é nociva para o debate. É importante particularizar a discussão e mostrar que a maconha tem suas especificidades.

De qualquer forma, no debate público é preciso entender a angústia e o medo das pessoas. É preciso dar a elas informações para que possam decidir com mais segurança.

A quem cabe despertar o interesse da sociedade?

— Aos grupos interessados em regulamentar a Cannabis, como os doentes que recorrem a ela para aliviar o seu sofrimento, as empresas que têm interesse em explorá-la, como as de medicamentos e cosméticos, e usuários em geral. Os lobbies sociais e comerciais, que são legítimos, precisam fazer pressão sobre os políticos e conquistar a opinião pública.

Acredito que será difícil convencer quem é contra recorrendo a agressões, chamando o oponente de “intolerante”, “ignorante” ou “reacionário”. Ninguém conquista aliados por meio da ofensa. É necessário promover um debate amplo e esclarecedor.

Deve-se considerar que a Cannabis está arraigada no Brasil e que, goste-se dela ou não, é impossível erradicá-la. Diante disso, o que a sociedade deve fazer? No meu entender, ela precisa ser pragmática, recorrer a estudos científicos, verificar se a maconha afeta mais ou menos a saúde individual e coletiva do que o álcool, o tabaco, a cocaína etc., pesar os prós e os contras e propor caminhos.

Neste momento, a questão está muito ideologizada: supostamente a esquerda é a favor e a direita é contra. Isso está longe de ser uma verdade absoluta. Nos Estados Unidos em 2016, estados que votaram em Donald Trump aprovaram a legalização da Cannabis. Há grupos liberais que apoiam a descriminalização da Cannabis por entender que o consumo ou não é uma escolha do indivíduo, com impactos sociais brandos, e que o Estado não deve intervir.

De qualquer modo, esse é um assunto que atualmente aparenta não despertar interesse no Brasil. O país está convulsionado e tem problemas bem mais urgentes para resolver. Cabe aos lobbies sociais e comerciais a árdua tarefa de pôr o assunto em pauta e levá-lo ao Executivo e ao Legislativo. E será a própria sociedade que, depois de um debate amplo, decidirá o que fazer. Como um tema delicado e complexo, qualquer decisão saída da canetada de algum burocrata sem a devida chancela da opinião pública seria uma tragédia.

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