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Governo feudal

Brasil sofre com lado mambembe de Bolsonaro

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo

Em meio a uma crise sanitária que já matou mais de 400 mil brasileiros, a pirotecnia do governo nesse domingo (2), inclusive com uso de helicóptero oficial, comprova a necessidade de protagonismo do presidente da República. Tudo bem que a “festa”, programada para aglomerar e ampliar o quantitativo de óbitos, era para ele, mas não era dele. Portanto, “passear” pelos ares de Brasília com dinheiro público é típico de personagens teatrais e de quem não está nem aí para o sofrimento do povo e do país. Sem qualquer preocupação com a muvuca gerada, hipoteticamente Jair Bolsonaro deve ter lembrado de uma célebre frase do dramaturgo Nélson Rodrigues, cunhada às vésperas de um Fla-Flu memorável: a morte não é desculpa para deixar de participar da “minha” carreata.

Aliás, estrelismo ou vedetismo são termos tão usuais na Presidência que, antes de qualquer sabatina, os ministros precisam saber que apenas um cidadão tem o direito de cobrar, mandar, determinar, estabelecer, explicar, gritar e espernear. Outro importante detalhe é que somente um integrante do staff pode usar caneta bic: o chefe. Escolhidos a dedo e, por isso, obedientes, os ministros não admitem sequer possibilidades de protagonismo. Os que tentam alçar voos próprios são abatidos ainda no ar ou acabam obrigados a passar recibo público de subserviência, como ocorreu recentemente com um dos ex-titulares da pasta da Saúde. Seus dois antecessores não se subordinaram ou não aceitaram determinações estapafúrdias e foram defenestrados no auge da pandemia.

Esta semana, os dois jubilados terão oportunidade de contar o que sabem e o que não devem sobre essas inconcebíveis ordens. Na prática, o governo é feudal e, portanto, somente os resignados e dóceis recebem medalhas, terras ou títulos. Com as exceções já conhecidas, a maioria é competente em suas áreas e, pelo menos aparentemente, não precisa do emprego para sobreviver. Nessa limitada lista de prestigiados, destacam-se os novos ministros da Saúde, o médico Marcelo Queiroga, e da Justiça, delegado federal Anderson Torres. Capacitados para o cargo, eles não têm necessidade de afagar diariamente o ego do presidente da República. Entretanto, como mostram afinidade indissolúvel com o pensamento do chefe do Executivo, as eventuais escorregadelas são tão articuladas como uma bajulação mais explícita.

Em entrevista recente, Torres fez três comentários dignos de análise. Disse, por exemplo, ser favorável a que cada cidadão tenha uma arma de fogo em casa. Também não acha correto culpar o governo pelo resultado da pandemia. Em relação à CPI da Covid, afirmou não saber ainda se será política ou técnica. Eu não tenho, mas quem tem expertise em segurança pública não gagueja quando afirma que armar o povo não é (e nunca foi) a melhor solução para conter a violência em lugar algum do mundo. Imagina no Brasil, país conhecido pela pacificidade de grande parcela do povo e com uma minoria violenta exatamente por conta do abandono de seguidos desgovernos, inclusive e sobretudo o atual. Nos Estados Unidos, onde a compra e venda de armas de fogo é liberada, os índices são assustadores.

Sem controle de Tio Sam, lá qualquer adolescente ou maluco diplomado recebe salvo-conduto para matar indiscriminadamente nas avenidas, escolas, parques e até hospitais. Com relação à pandemia, é público e notório que o vírus jamais foi reconhecido pelo presidente. Aliás, não bastasse ignorar a doença e subestimar os que desejavam tratá-la desde o início, esbravejou nas redes sociais e para apoiadores contra imunizantes testados por renomados cientistas. Também ameaçou recorrer às Forças Armadas para evitar que governadores e prefeitos trabalhassem para reduzir a contaminação, além de protelar o quanto pode a compra de vacinas, sob o argumento de que medicamentos sem eficácia resolveriam o problema. Não resolveram. Mataram mais, porque faltou para quem os usava com finalidades específicas.

O resultado? Quase 15 milhões de infectados e 407,6 mil mortos. E de quem é a culpa? Dos que morreram após dias sem oxigênio, remédios eficazes e sem kit intubação? Será daqueles que preferiram não esperar pelo imunizante que ainda não chegou para todos? Pode ser. Esse povo não aprende. Quer tudo a tempo e a hora. Acaba sem nada e, pior, culpado de tudo. Por fim, o ministro aguarda uma CPI técnica, pois teme que ela seja política. Interessante, mas ninguém teve coragem de tentar convencer a excelência acomodada de um lado da Praça dos Três Poderes a não politizar a pandemia e a imunização. Considerando que o pau que dá em Chico dá em Francisco, suas excelências do lado oposto entenderam que o vento que venta lá venta cá. Ou seja, impossível que o desfecho seja algo próximo do oba-oba.

Por enquanto, os integrantes da comissão avaliam pelo menos 200 falas negacionistas do presidente. É pouco? Deve ter mais. Quanto a Queiroga, improvável que cumpra o que prometeu faz menos de uma semana, durante reunião virtual da Organização Mundial de Saúde. Junto da crônica falta de vacina, vivemos uma das fases mais agudas da doença. Mesmo assim, o titular do Ministério da Saúde garantiu que toda população brasileira estará vacinada contra a Covid até o fim do ano. Que Deus e todos os anjinhos o ajudem. Entretanto, os números comprovam que até agora pouco mais de 15% da população alcançou a dupla imunização. Certamente os dois terão de se explicar à CPI. Queiroga terá de confirmar a promessa na comissão, enquanto Anderson Torres será questionado a respeito de um suposto pedido à Polícia Federal envolvendo governadores em desvios de dinheiro destinado às secretarias de Saúde. A quem interessa essa informação?

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