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A farsa da mitomania

Brasil vira um livro apócrifo sem autor e texto

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo*

No capítulo 1 do novo livro brasileiro está escrito que o governo acabaria com a corrupção, com a política do compadrio (eufemismo para o toma lá, dá cá) e, principalmente, com a perniciosa e barata (cara para o contribuinte) distribuição de cargos. Dois anos e três meses após a instalação da administração prometedora, ainda não conseguimos chegar à página 2. Imagina alcançar o capítulo segundo. A mesmice e a incapacidade do governante são tão cristalinas que basta uma rápida reflexão para termos certeza de que, no epílogo da “obra”, constarão termos como “nada fiz porque nunca nada soube”, “não permitiram que eu controlasse meu Exército” e, apesar do incontido desejo, “não alcancei êxito com o golpe desenhado desde o primeiro dia como presidente”.

Certamente a maioria das páginas do livro estará em branco, isto é, nada a ser registrado. Entretanto, quem tiver coragem e vida para chegar à página 17 terá o desconforto de ler o que houve de mais incômodo na história do Brasil. Dos escritos em letras garrafais, além do verbete pior presidente brasileiro, os destaques serão as frases “neguei (e nego) a letalidade da pandemia que atingiu boa parte da população” e, por absoluta falta de conhecimento e vontade, “deixei de comprar a tempo vacina para imunizar meu povo”. É possível que, na orelha da fictícia publicação, alguém ainda escreva que ele (o presidente) lembrou a viúva Porcina da novela Roque Santeiro, interpretada, na segunda versão, pela ainda transparente atriz Regina Duarte. No folhetim global, de 1975, a personagem Porcina era aquela que foi sem nunca ter sido. A ficção virou realidade 46 anos depois.

Escrita inicialmente pelo dramaturgo Dias Gomes (Aguinaldo Silva a concluiu), a novela, um dos maiores sucessos da história da televisão brasileira, só foi liberada integralmente pela censura em 1985. Adaptada para a cidade de “Asa Branca”, a trama girava em torno do mito “Roque Santeiro”, um jovem escultor de imagens vivido pelo falecido José Wilker. Roque morreu em uma batalha (depois ressuscitou), virou herói e alguns nativos buscaram até sua canonização. Talvez as urnas não nos permitam chegar a tanto em 2022. Tomara, pois corremos o risco de transformar cidadãos comuns e carcomidos pela fantasia palaciana em milhões de “Zés das Medalhas”, personagem do ator Armando Bógus, que ficou milionário vendendo medalhas e bugigangas do mito, antes que descobrissem que ele (Roque) estava vivo e arruinasse o “negócio”.

Que as urnas (tomara Deus que sem voto impresso) repitam as eleições dos Estados Unidos no ano passado e não ressuscitem mortos-vivos. Que eles descansem em paz e nos deixem felizes para sempre. Da cidade imaginada como microcosmo do Brasil sobrou, além da farsa do mito, a necessidade do pseudo líder tornar-se lenda e prosperar com sua história de heroísmo. Tudo a ver com os dias atuais. A diferença é que Asa Branca nunca foi polarizada entre sensatos e insensatos, jamais esteve doente do corpo, da alma e da cabeça, muito menos foi atingida por um vírus negado à exaustão por Sinhozinho Malta, o todo-poderoso do lugar, parecido com o dono do mundo ou senhor do Exército nacional.

Reitero que a doença que assolou o mundo e fez morada no Brasil passou de sarcástico diminutivo (gripezinha) a um aumentativo de monstro com várias cabeças. Os números do governo, divulgados com pompa pelo bem-intencionado ministro Marcelo Queiroga, não batem nunca com a realidade. Ele anunciou a imunização de um milhão de pessoas por dia, mas faltam vacinas até para garantir a saúde e a vida do público considerado alvo. Por isso, ainda não conseguimos atingir 10% dos 212 milhões de brasileiros. O resultado é trágico. Como escreveu semana passada um famoso colunista, “a mitomania de Bolsonaro” colocou a nação na liderança global das mortes por Covid. Somos verdadeiros, mas parecemos de ficção. Tudo de ruim está ou ocorre por aqui.

É o presidente que estimula golpe e desestimula ações da ciência, são governadores superfaturando equipamentos que salvam vidas, enfermeiros roubando botijões de oxigênio e os vendendo na internet, falsas enfermeiras aplicando soro fisiológico em empresários fura-fila, parlamentares esquecendo deliberadamente dos que os elegem, pessoas ainda imaginando um governo com preocupações que ultrapassem o próprio umbigo, além de um grupo (Movimento Brasil Livre) encomendando pesquisa para testar o nome do apresentador Danilo Gentili como candidato a presidente da República. Realmente não podemos ser considerados sérios. Por tudo isso, estamos isolados do mundo. Ninguém nos quer, ninguém quer nos ver ou receber. De país do futuro, viramos pária do planeta. Pior do que República de bananas, hoje somos nação de brincadeira. Melhor fechar para balanço. Acreditemos no poder de superação. O primeiro passo para a derrota definitiva é a desistência, perder a fé.

*Wenceslau Araújo é jornalista

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