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Escarnio

Burguesia começa a jogar pedra no caminho de Lula ao Planalto

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Autor/Imagem:
Roberto Amaral* - Foto Ricardo Stuckert

Toda sociedade que se preza (como EUA, Rússia, China e Cuba) tem sua própria visão de mundo, de que decorre a projeção e defesa de seus interesses; são países detentores daquilo que alguns chamam de “caráter nacional”, uma autoidentidade definidora do papel que a nação soberana decide desempenhar no jogo dos blocos econômicos e militares. São países que possuem pauta própria, atores históricos assistidos por classes dominantes servidoras da sociedade e do projeto de país. Não é o caso brasileiro, como se vê.

Nossas chamadas elites são forâneas e alienadas, descomprometidas com a construção de um projeto de país, reprodutoras dos valores e dos interesses da potência hegemônica. Falta-lhes tudo, mas falta-lhes principalmente o sentido de pertencimento a uma ordem comum. Não se identificam com o país, muito menos com seu povo. Essa elite aculturada nos governa em todos os campos da atividade humana: nos negócios, na política, nos partidos, num congresso desfibrado à mercê do centrão, num judiciário paquidérmico e classista, numa academia que não enxerga um palmo adiante do nariz, insensível ao Brasil real que tenta sobreviver do lado de fora de seus muros.

Quem não tem luz própria é levado a reproduzir os valores, a ideologia, os interesses das forças hegemônicas. Neste quadro, destaca-se o papel dos grandes meios de comunicação, no Brasil um decadente oligopólio empresarial a serviço do monopólio ideológico, instrumento da dominação de classe. O mundo de sua percepção, aquele que traz para os lares brasileiros, é o mundo das grandes redes de comunicação europeias e norte-americanas, que assim nos ditam simpatias e antagonismos, em função da geopolítica do comércio e da guerra. No frigir dos ovos é o Departamento de Estado dos EUA que decide o que a imprensa brasileira deve pensar e transmitir sobre seus adversários e aliados. Mediante suas lentes é que olhamos para a China, para a Rússia, para a Ásia e o Oriente, para palestinos e judeus, para nossos vizinhos.

E, ainda, é por esse filtro que nos vemos a nós mesmos.

O silêncio dos grandes meios à esta viagem de Lula à Europa é um escárnio a qualquer noção de decência e escancara seu partidarismo, e só foi quebrado, ao fim, graças às janelas propiciadas pelas redes sociais.

Os jornalões, na comunhão do autoritarismo com a partidarização, não gostaram do primeiro volume da biografia que Fernando Morais, escreveu sobre Lula. Reclamam sem parar. Simplesmente porque Morais não tratou, até aqui, dos processos de corrupção na Lava Jato. Na mesma edição do Estadão, do último dia 17, não se reserva uma só linha à viagem de Lula à Europa, com o colunista Marcelo Godoy, muito respeitado pelas suas sempre boas análises sobre o poder dos fardados, reclama porque o leitor do autor de Olga e Chatô, rei do Brasil não encontrará, na biografia de Lula, a “análise das acusações, das provas e dos processos que levaram à condenação do ex-presidente”.

A quais provas, porém, e a quais processos se refere o colunista? Àquelas provas e àqueles processos anulados pelo STF? Ora, essas descreditadas acusações tonitruadas nos tempos da Lava Jato (empreendimento que não teria o bom êxito que obteve não fosse o concurso da grande imprensa) estão sendo repetidas, repisadas, cozinhadas e reavivadas todo santo dia pelo jornal em que Marcelo Godoy escreve. Por que haveria Fernando Morais de levar mais água para o moinho da candidatura do “juiz ladrão” (na precisa qualificação do deputado federal Glauber Braga), o único juiz brasileiro que mereceu do STF a condenação de juiz parcial?

Há, porém, no texto de Marcelo, um parágrafo que pode sugerir reservas à editora da biografia de Lula. É quando Godoy admite que “haverá questionamento à Companhia das Letras sobre a opção de editar a obra que trata do petista feita por um escritor que declara simpatia pelo ex-presidente”. Este parágrafo soa estranho, insinuando um vício ético. Em princípio sugere algo muito próximo de censura à Editora, e põe em dúvida as credenciais de Fernando Morais. Godoy pretenderá dizer que, para ser isenta (se é que uma biografia ou um texto jornalístico qualquer, ou mesmo uma pesquisa histórica, pode arguir isenção), a biografia de Lula deveria ser encomendada a Moro, Dallangnol ou Ciro Gomes? Ou, talvez a um extraterrestre. Por fim, no evidente intuito de depreciar a obra de Morais, o colunista termina por reduzi-la a mera versão “de um jornalista que tem lado”. Ora, Marcelo, todos temos lado, você tem lado, Fernando Morais tem lado, como este escrevinhador; a diferença é que o nosso é distinto do seu.

Autocolonizada (a submissão é uma escolha), a classe dominante brasileira é bisonha e frívola, ridícula em sua macaquice diante da potência econômica e seus valores, a fonte única de seu modo de ser, que tenta copiar. Depois da ‘Estátua da liberdade’, o ridículo atroz erguido como imagem votiva de um shopping center na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, para a adoração de “emergentes”, a Bolsa de Valores de São Paulo, templo e altar do capitalismo brasileiro em sua versão especulativa, instalou, na sua porta, uma réplica do Touro de Ouro (Changing Bull) que orna Wall Street, em Nova York.

O bovino, por sinal, mereceu foto na capa do Estadão. Homenagem significativa. Nada mais denotativo da assimilação pelo colonizado do discurso do dominador. O que Frantz Fanon, em Os condenados da terra, chamava de fraqueza congênita da consciência nacional dos países subdesenvolvidos, a saber: o resultado da traição de sua burguesia, desde a origem mais remota da formação nacional associada aos interesses da metrópole e guardiã de seu domínio sobre a colônia.

Nada mais ilustrativo de um triste país que se deixaria dominar pelo bolsonarismo.

*Ex-ministro da Ciência e Tecnologia

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