Recomeço
Café com Freud e farinha d’água, com o direito de ficar triste
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Acordei com o barulho do mundo me chamando pra batalha. Não era despertador era a vizinha gritando com o filho, o latido dos cachorros da rua e um fiapo de luz atravessando minha janela mal vedada. Não se faz silêncio no subúrbio. Nem paz. Lá vou eu: escovo os dentes com vontade de voltar a dormir. Olho pra mim no espelho e penso que Freud devia ter morado num bairro popular antes de inventar o inconsciente. Aqui, a psicanálise não se dá no divã, mas no portão. A gente resolve a vida com café coado no pano, conversa atravessada com a vizinha e um choro disfarçado na hora de estender os panos no varal.
Hoje pensei em recomeçar. De novo. Mas dessa vez com farinha d’água. Porque recomeço bom, minha filha, tem que ter sustância. E eu aprendi com minha mãe que ninguém aguenta ser forte de barriga vazia.
Liguei o rádio. Tocava uma música antiga que dizia algo sobre esperança. Chorei. Tem dias em que a esperança dói mais do que a saudade, porque ela exige um tipo de fé que a gente nem sempre tem onde guardar. É como se a gente tivesse que acreditar que amanhã vai ser melhor, mesmo que hoje esteja escorrendo pelo ralo junto com o sabonete barato da pia. Enquanto o café fervia, lembrei de uma aula da pós-graduação onde alguém dizia que “toda identidade é uma ficção”. E eu pensei: se é pra fingir, então que seja bonito. Que eu seja, no mínimo, uma heroína trágica nordestina com um diploma em Ciências Sociais e um coração todo remendado com música brega e orações de vó.
Aliás, oração é o nome que minha avó dava pro que Freud chamava de elaboração. Ela não entendia de psicanálise, mas sabia de dor. Sabia, inclusive, que a dor tem gosto e às vezes é gosto de café requentado.
Já fui chamada de forte, guerreira, exemplo. Hoje só quero ser alguém que tem o direito de ficar triste sem ter que explicar. Loucura? Não sei. Mas acho que as melhores revoluções começam no silêncio da cozinha.
E é aí que tudo muda: no momento em que você toma o primeiro gole de café, senta em frente à sua vida e diz pra ela com toda a serenidade possível: “Hoje eu não quero vencer. Só quero sobreviver sem enlouquecer.”
O mundo continua exigindo produtividade, beleza, resiliência e posts inspiradores. Mas, aqui do meu canto, eu só ofereço farinha d’água, teoria crítica e fé. E, honestamente, esse é o meu ponto de vista.
